Onde andará Dulce Veiga? - Caio Fernando Abreu

“Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida...”

“Eu sorri. Quer dizer, contraí os músculos da face para mostrar os dentes.”

“Seria tão perfeito se fosse exatamente assim como penso que lembro, tantos anos depois, que ficou como se tivesse sido.”

“Parecia pior, parecia real.”

“Queria o real, um real sem nada por trás além dele mesmo. Apenas mais fundo, mais indisfarçável, sem nenhum sentido outro que não aquele que se pudesse ver, tocar e cheirar como os cheiros, mesmo nauseantes, mas verdadeiros, dos corredores do edifício. Eu estava farto do invisível.”

“As duas mãos postas sobre o teclado, naquela atitude que guarda um pouco de oração silenciosa e muito de loucura mansa, ao querer desesperadamente dar forma através de palavras a algo que só existe, sem face nem nome, nessa região longínqua do cérebro onde a fantasia cruza com a memória e a intuição cega.”

“Canto porque cantar me dá um sentido. Mas penso sempre que cantar é inútil. Não quero nenhuma das coisas que o canto poderia me dar. Quero encontrar outra coisa. Outra coisa que nem sei o nome, maior que eu mesma ou que qualquer canção. Gostaria de desaparecer um dia.”

“Não quero lembrar. Faz mal lembrar das coisas que foram e não voltam. No começo fiquei com raiva, achei que ela não pensou em mais ninguém quando desapareceu. Só nela mesma. Mas a gente nunca pode julgar o que acontece dentro dos outros. Ela queria outra coisa”

“A vida não é apagável, pensei. Nem volta atrás. Ainda não construíram a máquina do tempo. Ninguém virá em meu socorro. Faz tanto tempo que invento meus próprios dias. Preciso começar por algum ponto.”

“– Você lembra de mim? – perguntei.
– Claro que lembro. Você esteve no meu apartamento em São Paulo, há muitos anos.
– Eu mudei muito, como você lembra?
– Eu mudei também, quem sabe por isso lembro.”

“São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.”

Novas Comédias da Vida Privada - Luis Fernando Verissimo

"– Einstein! – exclamou Deus quando o avistou.
– Todo-Poderoso! – Exclamou Einstein, já que estavam usando sobrenome. E continuou: – Você está muito bem para uma projeção antropomórfica da compulsão monoteísta judaico-cristã.
– Obrigado. Você também está ótimo."

"Na margem direita, um lobo e um cordeiro conversando. Da margem esquerda, João Guimarães Rosa contempla a terceira margem. O bebê flutuando dentro da cesta é Moisés. (...) Aquela cena vocês certamente vocês vão querer fotografar, João Batista batizando Jesus. (...) O rio é sempre o mesmo e nunca é o mesmo. A água que purifica é a mesma que recebe o esgoto ácido. A água que mata a sede é a mesma que afoga, a que passa e não passa."

19 de agosto de 2009

2 anos de fragmentos.

A Máquina do Tempo - H. G. Wells

"Estamos saindo a cada instante do momento presente. Nossa existência mental, que é imaterial e não tem dimensões, desloca-se ao longo da Dimensão-Tempo com uma velocidade uniforme, do berço ao túmulo. Da mesma forma que viajaríamos para baixo se começássemos nossa existência cinqüenta milhas acima da superfície da terra."

"Você está equivocado ao dizer que não podemos deslocarmos livremente no tempo. Por exemplo, ao me lembrar vividamente de um incidente, volto ao momento em que ele ocorreu. Estou com o espírito ausente, como se costuma dizer. Dou um salto ao passado. Naturalmente, não temos condição alguma de permanecer no passado por qualquer extensão de tempo, assim como um selvagem ou um quadrúpede não pode permanecer no ar dois metros acima do solo. Mas o homem civilizado dispõe de muito mais recursos que o selvagem, e pode desafiar as leis da gravitação num balão. E por que não pode ele esperar que um dia, finalmente, consiga parar ou acelerar seu curso ao longo da Dimensão-Tempo, ou mesmo virar-se e viajar na outra direção?"

"O vigor é um produto da necessidade; a segurança é um convite ao enfraquecimento."

"É inútil ficar sentado em meio a todas essas coisas desconhecidas, tentando resolver um enigma. Você acabará monomaníaco. Encare este mundo. Aprenda-lhe os costumes, observe-o, não tire conclusões apressadas. No fim você acabará encontrando todas as respostas."

"É uma lei natural, por nós menosprezada, que a versatilidade intelectual é a compensação para mudanças, os perigos e as dificuldades. Um animal em perfeita harmonia com seu meio torna-se uma perfeita máquina. A natureza nunca recorre à inteligência, a menos que o hábito e o instinto sejam insuficientes. Não há inteligência onde não há mudanças nem necessidade de mudanças. Só desenvolvem a inteligência aqueles animais que tem que enfrentar uma enorme gama de perigos e necessidades."