“Mas, cada vez mais pude ver que, na realidade, nosso pequeno mundo burguês era querido e admirado lá da distância de seu espaço vazio, da sua estranheza e da sua condição de lobo, como algo sólido e seguro, como algo distante e inatingível para ele, como o lar e a paz, aos quais nenhum caminho poderia levar.”
“Como admirava, então, aquelas enevoadas tardes de outono ou de inverno! Como respirava, ansioso e embevecido, a sensação de isolamento e melancolia, quando, noite adentro, enrolado em meu capote, atravessava as chuvas e tempestades de uma natureza hostil e revoltada, e caminhava errante, pois naquele tempo já era só, mas ia repleto de profunda satisfação e de versos, que mais tarde escrevia, em meu quarto, à luz de uma vela, sentado à beira da cama.”
“Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio a um mundo cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”
“Nada daquilo era para mim, tudo aquilo era para os normais, as pessoas comuns.”
“Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma.”
“Agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica à sua própria visa, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou.”
“Não se deveria falar dos animais dessa maneira. Podem ser terríveis às vezes, mas sem dúvida são muito mais justos que os homens.”
“Não fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão somente um desses dias como desde algum tempo costuma ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos.”
“Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal, após tantos anos. Era fria, oh! Sim! Mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.”
“Não se pode negar que fosse, em geral, muito infeliz, e podia também fazer os outros infelizes, especialmente quando os queria ou era por eles estimado. Pois todos os que com ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa inteligente, refinada e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriram o lobo que morava nele. E assim tinha de ser, pois Harry, como toda pessoa sensível, queria ser amado na sua totalidade e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem, o indômito, o perigoso e o forte, e esses achavam profundamente decepcionante e deplorável quando o selvagem e o perverso se transformava em homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e acalentar ideais humanos.”
“Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro consigo mesmo, e está cônscio da existência daquele espelho no qual tem uma necessidade tão amarga de olhar-se e no qual teme mortalmente ver-se refletido.”
“O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis; o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. Os antigos asiáticos sabiam disso muito bem e encontraram no ioga búdico uma técnica precisa para descobrir a ilusão da personalidade. Divertido e multíplice é o jogo da humanidade: a ilusão que levou milhares de anos para ser descoberta pelos hindus é a mesma ilusão que aos ocidentais custou tanto trabalho custodiar e fortalecer.”
“O homem não é uma forma fixa e duradoura (tal era o ideal dos antigos, apesar do pensamento em contrário de alguns luminados da época); é antes um ensaio e uma transição, não é outra coisa senão a estreita e perigosa ponte entre a Natureza e o Espírito. Para o espírito, para Deus, ele é impulsionado por sua vocação mais íntima. Para a natureza, para a mãe, é atraído pelo mais íntimo desejo. Sua vida oscila vacilando angustiosamente entre ambas as forças.”
“Imagine-se um jardim de cem espécies de árvores, com mil variedades de flores, com cem espécies de frutas e outros tantos gêneros de ervas. Pois bem, se o jardineiro que cuida desse jardim não conhece outra diferenciação botânica além do ‘joio’ e do ‘trigo’, então não saberá que fazer com nove décimas partes do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, cortará as árvores mais nobres, ou pelo menos ter-lhes-á ódio e as olhará com maus olhos. Assim faz o Lobo da Estepe com as mil flores de sua alma. O que não está compreendido na designação pura e simples de ‘lobo’ ou de ‘homem’ nem sequer merece sua atenção. E quantas qualidades ele empresta ao homem! Tudo que é covarde, símio, estúpido, mesquinho, desde que não seja muito, diretamente lupino, ele o atribui ao 'homem’, assim como atribui ao ‘lobo’ tudo que é forte e nobre, só porque não conseguiu ainda dominá-lo.”
“Mas pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros.”
“Quer fosse alta perspicácia quer simples ingenuidade, quem vivi assim tão no presente e sabia apreciar tão cuidadosa e amigavelmente cada florzinha do caminho, estava acima de tudo, e a vida nada podia contra ela. (...) Não, seu abandono ao momento era tão simples e tão completo que estava aberta por inteira ao mesmo tempo a todo acontecimento prazeroso como a todo horror negro e fugitivo que proviesse dos mais profundos recessos de sua alma; e tudo saboreava, até o fim.”
“Saímos da natureza e caímos no vazio”.
“Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo.”
“Tem ansiado abandonar este tempo, este mundo, esta realidade, e entrar numa outra realidade que lhe seja mais adequada, num mundo intemporal. Pois faça-o, meu amigo, eu o convido a isso. você já sabe onde se oculta esse outro mundo, já sabe que esse outro mundo que busca é sua própria alma. Só em seu próprio interior vive aquela outra realidade por que anseia. Nada lhe posso dar, que já não exista em você mesmo, não posso abrir-lhe outro mundo de imagens além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar, a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível seu próprio mundo, e isso é tudo.”
“Sem dúvida, já terá adivinhado há algum tempo que o domínio do tempo, a libertação da realidade e tudo aquilo que deseja chamar de seu anseio não significam outra coisa senão o desejo de libertar-se de sua chamada personalidade. Tais são as prisões em que você se encontra.”
“Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo mais!”