19 de agosto de 2024

17 anos de fragmentos. 

O homem que calculava - Malba Tahan

"A paixão está para nós como a cor do vidro para os olhos. Se alguém nos agrada, tudo lhe louvamos e desculpamos; se, ao contrário, nos aborrece, tudo lhe condenamos, ou interpretamos de modo desfavorável." 

Contato - Carl Sagan

“Durante toda a existência da humanidade na Terra, o céu estrelado havia sido uma companhia e uma inspiração. As estrelas eram reconfortantes. Pareciam demonstrar que o firmamento fora criado para a alegria e a instrução dos seres humanos. Essa patética presunção tornou-se a sabedoria convencional em todo o planeta. Nenhuma cultura estava livre dela. Algumas pessoas encontravam no céu uma saída para a sensibilidade religiosa. Muitas se sentiam esmagadas e apequenadas pela glória e pela escala do universo. Outras eram estimuladas aos mais absurdos desvarios da imaginação.”

“Ellie nunca havia lido a Bíblia a sério antes e se inclinara a aceitar a opinião do pai, talvez carregada de certa implicância, de que se tratava de histórias bárbaras misturadas com contos de fadas.”

"Por que não havíamos recebido sinal algum? Seria possível que Dave tivesse razão? Não existiam civilizações extraterrestres em parte alguma? Todos aqueles bilhões de mundos seriam ermos, estéreis? Só existiriam seres inteligentes neste canto obscuro de um universo incompreensivelmente imenso? Por mais que tentasse, Ellie não conseguiu levar a sério essa possibilidade. Ela coincidia à perfeição com os medos e pretensões humanos, com doutrinas não comprovadas sobre a vida além-túmulo, com pseudociências como a astrologia. Era a encarnação moderna do solipcismo geocêntrico, a presunção que dominara nossos antepassados, a ideia de que éramos nós o centro do universo."

"Ellie tinha de lutar contra a tendência a formar uma personalidade demasiado agressiva ou tornar-se uma completa misantropa. Em dado momento, percebeu a situação estranha. Misantropo é a pessoa que detesta todas as demais, e não apenas os homens. E decerto havia uma palavra para designar uma pessoa que não gosta de mulheres: misógino. No entanto, os lexicógrafos, todos homens, haviam deixado de criar uma palavra que designasse a aversão aos homens. Quase todos eles eram homens, pensou ela, e tinham sido incapazes de imaginar que houvesse necessidade dessa palavra."

“A Mensagem, acreditava Ellie, era uma espécie de espelho, e nela cada pessoa via suas crenças serem refutadas ou confirmadas. Era considerada uma confirmação geral de doutrinas apocalípticas e escatológicas mutuamente excludentes.”

“Grupos diversos tinham a mensagem na conta de comprovação da existência de muitos deuses, de um único deus ou de nenhum.”

“Fanatismo, medo, esperança, debates passionais, preces serenas, nervosa reavaliação, desinteresse exemplar, estreita hipocrisia e ânsia por ideias novas e sensacionais haviam se tornado epidemias, varrendo febrilmente a superfície do minúsculo planeta Terra. Dessa intensa fermentação, Ellie julgava ver surgir, vagarosamente, a idéia de que o mundo não passava de um fio num vasto tapete cósmico.”

"No entanto, não conseguia penetrar-lhes a mente; não tinha meios de imaginar como seria o pensamento de uma criatura muito mais inteligente do que um ser humano. Claro. Não havia motivo para surpresa. Que ela esperava? Era como tentar visualizar uma nova cor primária ou um mundo onde se pudessem identificar várias centenas de conhecidos só pelo cheiro... Podia-se falar sobre isso, mas não vivenciar a situação. Por definição, só pode ser extremamente difícil compreender o comportamento de um ser muito mais inteligente."

“Ellie olhou. Reprimindo um certo estremecimento de repugnância, tentou ver a lagarta através dos olhos de Der Heer. ‘Veja o que ela faz’, continuou ele. ‘Se fosse grande como você ou eu, mataria todo mundo de medo. Seria um monstro de verdade, certo? Mas ela é pequena. Come folhas, trata da sua vida e acrescenta um pouco de beleza ao mundo.”

"Os teólogos parecem ter reconhecido um aspecto especial, não racional... eu não diria irracional... da sensação do sagrado ou do santo. Chamam isso de 'numinoso'. O termo foi usado pela primeira vez... vamos ver... uma pessoa chamada Rudolf Otto, num livro publicado em 1923, A ideia do sagrado. Ele acreditava que os seres humanos estavam predispostos a detectar e venerar o numinoso. Chamou isso de misterium tremendum. Até o meu latim é suficiente para entender isso. Na presença do misterium tremendum, as pessoas se sentem absolutamente insignificantes, mas, se entendi bem, não alienadas pessoalmente. Rudolf Otto considerava o numinoso como uma coisa de 'completa alteridade' e a reação humana a ele como sendo de 'absoluto pasmo'. Se é a isso que as pessoas religiosas se referem quando usam palavras como sagrado ou santo, estou com elas. Já senti alguma coisa parecida só ao operar o radiotelescópio, à espera de um sinal, quanto mais ao recebê-lo de verdade. Acho que tudo na ciência provoca essa sensação de pasmo."  

“'Sempre entendi que um agnóstico é um ateu sem a coragem de expressar suas convicções’
‘Da mesma forma o senhor poderia dizer que um agnóstico é uma pessoa profundamente religiosa que possui um conhecimento ao menos rudimentar da falibilidade humana. Quando digo que sou agnóstica, quero apenas dizer que não disponho de provas. Não existem provas contundentes da existência de Deus... pelo menos da sua espécie de deus... como também não existem provas convincentes de sua inexistência. Como mais da metade da população da Terra não é formada de judeus, cristãos ou mulçumanos, eu diria que não há argumentos conclusivos para a existência do deus em que o senhor acredita. Se não fosse assim, todos os habitantes da Terra teriam sido convertidos.’”

“'Michael’, disse Ellie, ‘o mundo é, ao mesmo tempo, melhor e pior do que você imagina.’
‘É provável que você conheça melhor do que eu o melhor’, respondeu ele, ‘mas não pode querer me ensinar o pior.’”

“Entenda, as pessoas religiosas... a maioria delas... pensam realmente esse planeta seja uma experiência. É a isso que se resumem suas crenças. Sempre há um ou outro deus se metendo nas coisas, andando com mulheres de mercadores, dando tábuas em montanhas, ordenando aos pais que mutilem seus filhos, ensinando às pessoas as palavras que podem dizer e as que não podem, fazendo as pessoas se sentirem culpadas por gozarem a vida, e assim por diante.”

"Crescia a sensação de humanidade, bilhões de pequenos seres espalhados pelo mundo, aos quais se apresentava, coletivamente, uma oportunidade sem precedentes ou mesmo um grave perigo em comum. A muitos parecia absurdo que nações litigantes continuassem suas rixas mortíferas quando confrontadas com uma civilização não humana de capacidade imensamente superior. Havia uma aragem de esperança no ar."

"'Essa é uma visão nobre e altruísta do mundo, com certeza, e eu seria a última pessoa a negar que existe bondade no coração humano. Mas quanta crueldade não foi cometida quando não existia o amor de Deus?
'E quanta crueldade cometida quando esse amor existia? Savonarola e Torquemada amavam a Deus, ou pelo menos era o que diziam. A sua religião parte do princípio de que as pessoas são crianças e precisam de um bicho-papão para se comportarem bem. O senhor quer que as pessoas acreditem em Deus para obedecerem à lei. Esse é o único meio que lhe ocorre: uma rígida força policial secular e a ameaça de um castigo por um Deus onividente, que puna tudo quanto a polícia não viu.'"

"'Somos todos humanos'. Essa era uma frase que se ouvia com frequência naqueles dias. Era extraordinária a raridade com que, em décadas anteriores, se expressavam sentimentos dessa natureza, sobretudo nos meios de comunicação. Compartilhamos o mesmo pequeno planeta, dizia-se, e – quase – a mesma civilização global. Era difícil imaginar os extraterrestres levando a sério um pedido de favorecimento por parte de representantes de uma ou outra facção ideológica. A existência da Mensagem – mesmo deixando de lado sua enigmática função – estava unindo o mundo."

“‘Perguntei a ele se, já que pode comunicar-se com uma pedra, é capaz de se comunicar com os mortos’, disse Xi.
‘E o que ele respondeu?’ 
‘Que com os mortos é fácil. Sua dificuldade é com os vivos.’”

"A Terra é uma aula prática para os deuses aprendizes. 'Se vocês errarem muito, fazem uma coisa como a Terra', dizem a eles. Mas, evidentemente, seria um desperdício destruir um mundo perfeitamente íntegro. Por isso eles nos dão uma olhadinha de vez em quando, só por segurança. É possível que de cada vez tragam os deuses que cometeram bobagens. Da última vez que olharam, estávamos brincando nas savanas, tentando correr mais do que os antílopes. 'Muito bem, está tudo certo', disseram. 'Esses sujeitos aí não vão nos dar nenhum problema. Daqui a 10 milhões de anos, a gente olha outra vez. Mas, por segurança, vamos acompanhá-los com radiofrequências.' Então, um belo dia, soa um alarme. Uma mensagem da Terra. 'O quê? Eles já tem televisão? Vamos ver o que estão fazendo.' Estádio olímpico. Bandeiras nacionais. Ave de rapina. Adolf Hitler. Milhares de pessoas aplaudindo. 'Chi!', dizem. Conhecem os sinais de perigo."

“A fronde de palmeira atendia a outra finalidade, compreendeu. Ela precisava de alguma coisa que lhe lembrasse a Terra. Tinha medo de ser tentada a não voltar.”

“'Quero saber o que pensa de nós’, disse ela lacônica. ‘O que realmente pensa.’
Ele não teve um instante de hesitação. ‘Muito bem. Acho que é extraordinário que tenham se saído tão bem. Praticamente não dispõem de uma teoria de organização social, possuem sistemas econômicos incrivelmente atrasados, não têm nenhuma idéia do mecanismo de previsão histórica e possuem pouquíssimo conhecimento de si próprios. Considerando a rapidez com que o mundo de vocês está mudando, é assombroso que ainda não tenham voado pelos ares. É por isso que não queremos abandoná-los. Vocês, humanos, têm certo talento para adaptabilidade... pelo menos a curto prazo.’
‘É esse o problema, não é?’
‘Um dos problemas.'"

"Não é impossível que a algum ser infinitamente superior todo o universo não passe de uma só planície, sendo a distância entre planeta e planeta como os poros de um grão de areia, e os espaços entre sistema e sistema, semelhantes aos intervalos entre um grão e o adjacente. Samuel Taylor Coleridge, Omniania."

"Na estação, ela havia aprendido uma espécie de humildade, um lembrete a respeito de quão pouco os habitantes da Terra realmente sabiam. Era possível que houvesse, pensou, tantas categorias de seres mais avançados do que os seres humanos quanto as que existem entre nós e as formigas, ou talvez mesmo entre nós e os vírus. No entanto, isso não a deprimira. Em lugar de uma aterradora resignação, provocara nela uma crescente sensação de grandeza. Aumentara tanto a escala das coisas a que aspirar!" 

Kafka à beira-mar - Haruki Murakami

"Você pode ir para longe, muito longe, sem que isso signifique que conseguiu fugir daqui de maneira definitiva. Acho que não deve depositar muita esperança nessa questão da distância, entendeu?"

"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar os olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até atingir o outro lado."

"Não sei se me julgavam desagradável, ou se tinham medo de mim, mas a verdade é que eu gostava de ser solitário. Eu tinha tanta coisa para fazer... Nos intervalos, eu sempre ia à biblioteca e lia muitos livros com avidez."

"Nem sempre eu conseguia defender essa tranquila independência. Às vezes, a cerca, que eu pensava haver erguido bem alto em torno de mim, ruía por completo. Não foram muitas as vezes em que isso aconteceu, mas houve algumas. Sempre que eu me desse conta disso, a parede desaparecia e, de repente, eu me via completamente nu e exposto perante o mundo. Nessas ocasiões, eu me perturbava por completo."

"– Já não dizia um velho ditado que 'encontros fortuitos...'
– '... o destino estabelece' – completo.
– Isso, isso mesmo – dizia ela. – Que significa?
– Que todos os acontecimentos, mesmo os mais fortuitos, são cármicos, foram preparados em vidas anteriores. Que coincidências não existem."

"Sou livre, penso. Fecho os olhos e considero por instantes a ideia de liberdade. Não consigo entender direito o que significa ser livre. Entendo apenas que, neste momento, estou sozinho. Estou sozinho em terra estranha. Como um explorador que perdeu a bússola e mapa. Ser livre é isso? Não sei. Desisto de pensar."

"Dentro de cem anos, provavelmente todas as pessoas aqui presentes (assim como eu) terão desaparecido da face da Terra e se transformado em lixo ou em cinzas. Penso nisso e me sinto estranho. Tudo ao meu redor adquire as características de uma frágil ilusão. Como se à menor aragem tudo pudesse se espalhar e sair voando pelos ares. Abro minhas duas mãos e as contemplo fixamente. Afinal, por que me esforço tanto em fazer o que eu faço? Por que continuo a viver tão desesperadamente?" 

"Então, sob o resplandecente céu noturno, sou acometido por nova e violenta onda de pavor. O ar me falta e o coração se acelera. Eu vivera sob o intenso escrutínio destas incontáveis estrelas, mas nem me dera conta de que existiam. Jamais me passara pela cabeça considerá-las com seriedade. Aliás, não só elas. Pois quantas coisas além delas não haveria no mundo de cuja existência eu não tinha a menor ideia ou não me dera conta? Penso nisso e me sinto irremediavelmente pequeno e incapaz."

"Retiro o fone dos ouvidos e ouço o silêncio. O silêncio é realmente audível. Sei disso agora."

"A bateria do meu walkman descarregou, mas a música não me faz tanta falta como a princípio imaginei que faria. Encontro substitutos para ela em toda parte: no canto dos pássaros, no cricrilar de inúmeros insetos, no burburinho do regato, no farfalhar do vento nas árvores, nos passos ligeiros sobre o telhado, no gotejar da chuva... E também nos sons misteriosos que por vezes me chegam ao ouvido, inexplicáveis, inexprimíveis em palavras. Até agora, não me dera conta da infinidade de sons puros e maravilhosos que povoam a natureza. Eu vivera a minha vida inteira sem me dar conta desse tesouro maravilhoso. Para compensar o tempo perdido, sento-me na varanda, fecho os olhos e me anulo para melhor captar todos os sons existentes ao meu redor."

"– E por falar em contradições – diz Oshima como se a ideia de repente lhe ocorresse –, sabe o que eu penso de você desde o primeiro momento em que o vi? Que, por um lado, você busca alguma coisa intensamente e, por outro, faz de tudo para fugir dessa coisa."

"Os únicos seres com quem se comunicava plenamente eram os gatos. Nos dias de folga, ia para um parque próximo, sentava-se num banco até o fim do dia e conversava com eles. Curiosamente, nunca se via sem assunto nessas ocasiões."

"– Começo a achar que, para você, essa mochila simboliza a liberdade – comenta Oshima.
– Provavelmente – eu digo.
– Pode ser que carregar consigo o símbolo da liberdade lhe dê mais prazer do que ter nas mãos a liberdade propriamente dita.
– Algumas vezes... – eu digo."

"– Meu jovem, pode ser que a grande maioria das pessoas existentes no mundo não esteja em busca de liberdade. As pessoas apenas pensam que estão. Tudo é ilusório. Caso a liberdade lhes fosse realmente concedida, a maioria se veria num mato sem cachorro. Lembre-se sempre disso. Na verdade, as pessoas gostam de se sentir presas, entendeu? 
– Você também, Oshima?
– Sim, eu também gosto de me sentir preso. Isto é, até um certo ponto – emenda Oshima. – Jean-Jacques Rousseau declarou: a civilização teve início no momento em que a humanidade aprendeu a construir muros. Um rasgo de genialidade. Exatamente, a civilização é o produto da falta de liberdade intramuros."

"O que eu busco, isto é, a força que eu busco, não se relaciona com vitórias ou derrotas. Tampouco procuro paredes capazes de rechaçar forças externas. O que eu busco é a força que me permita enfrentar a quem vem de fora e resistir a ela. Um tipo de força que me permita suportar com serenidade a injustiça, a falta de sorte, a tristeza, o mal-entendido e a incompreensão."

"Nossa existência é apenas um teatro de sombras desse princípio. O vento sopra. Há vendavais de furioso poder destrutivo, há brisas reconfortantes. Mas todo vento um dia cessa e desaparece. O vento não é matéria sólida. É mero nome que se dá aos deslocamentos de ar. Você apura os ouvidos. E decifra o sentido dessa metáfora."

"– Senhora Hoshino – disse Nakata.
– Hum?
– Que coisa linda é o mar, não?
– Realmente. Olhar para ele acalma o espírito.
– E por que será que olhar para o mar acalma o espírito? 
– Talvez porque ele é grande e não tem nada sobre ele – disse o rapaz, apontando o mar alto. – Aposto que não teria um efeito tão calmante se houvesse uma loja de jogos eletrônicos naquele ponto e um enorme painel anunciando Casa de Penhores Yoshikawa. É simplesmente fantástico não ter nada até onde a vista alcança."

"Existe um mundo paralelo, contíguo a este em que vivemos. Você é capaz de entrar nele até um certo ponto. É também capaz de voltar de lá são e salvo. Contanto que esteja atento. Mas uma vez transposto certo ponto, nunca mais será capaz de voltar. Não vai mais achar o caminho. É um labirinto."

Ciranda de pedra - Lygia Fagundes Telles

"Crispou as mãos como se pudesse agarrar as rédeas do pensamento que corcoveava por aquele caminho detestável, ah, mas era preciso puxá-lo para outro lado, com força, com força!"

"Por que tranquilidade ou indiferença, no fundo, não eram a mesma coisa?"

"– Você acredita em Deus? – perguntou ela após algum tempo.
– Antes, deduzi que Ele devia existir. Mas fui além, depois. O fato é que nesta minha vida assim de solidão, eu pensava ter escalado toda aquela escada de que fala Platão, você se lembra disso? No primeiro degrau, o simples amor pelas coisas terrenas, pelas belas coisas terrenas. Progredindo, chega-se às belas formas, das belas formas ao belo proceder, do belo proceder aos belos princípios, dos belos princípios ao princípio último, que é o da beleza absoluta. raciocinei, e a beleza absoluta só pode ser Deus.
Calou-se. Acendeu um cigarro.
– Como vê, tudo assim formal, calculado. Mas uma tarde, na chácara, eu olhava uma teia de aranha e então aconteceu isso, senti em redor a presença Dele. No céu, o sol lançava raios vermelhos e retos, iguais aos que as crianças traçam nos seus desenhos, iguais aos ingênuos resplendores dos santinhos de papel. Vi então que Ele estava na tarde, no todo imenso e na parte ínfima, estava na luz do sol e na sombra rendada que a teia da aranha projetava no chão, estava nas folhas aos meus pés e estava naquele passarinho que passou como uma seta sobre minha cabeça. Quando respirei, era como se estivesse respirando Deus."

"Creio, sim, na sobrevivência da alma, mas isto porque sinto os meus mortos em redor. Eles continuam, embora nenhuma força consiga governá-los. Mortos e vivos, estão todos por aí, completamente soltos. E a confusão é geral."

"Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. A música – acrescentou, detendo-se ao ouvir os sons de um piano num exercício ingênuo. – Este céu que nem promete chuva – prosseguiu. – Aquela estrelinha que está nascendo ali... Está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os Reis Magos, nem os pastores, nem marinheiros perdidos. Não faz nada. Apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza. No inútil também está Deus."

"'Feliz Ano Novo! Pois sim!' – sussurrou Virgínia ao apertar a campainha do apartamento de Letícia. Difícil encontrar um voto mais ocioso, mais formal. Podia-se desejar uma tarde feliz, uma noite feliz, um dia inteiro feliz, no máximo. Mas um ano? Felizes, só mesmo os egoístas, os alienados como Otávia. Os contemplativos como Conrado. Ou então, os inconsciente como Rogério."

"Ouça, querida – disse-lhe Otávia certa vez –, não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora. Mas passa."

"Essa coisa de Natal, também... É preciso acabar com essa história que é de uma melancolia incrível, não se falará em Natal.
'Mas se pensará nele', disse Virgínia a si mesma. Ah! A obrigação de abraçar e ser abraçada, aquela necessidade de comunicação, de calor... Era cruel demais para quem estava na solidão."

O deserto dos tártaros - Dino Buzzati

"Pareceu-lhe achar-se entre homens de outra raça, numa terra estranha, num mundo duro e ingrato."

"Talvez tudo seja assim. Acreditamos que ao redor haja criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira; preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós."

"Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém."

"Datas que antigamente pareciam inverossímeis, de tão remotas, agora se aproximavam repentinamente do horizonte próximo, recordando os duros prazos da vida."

"E, subitamente, os antigos terrores caíram por terra, os pesadelos afrouxaram-se, a morte perdeu seu vulto enregelante, transformando-se em coisa simples e de acordo com a natureza."

A cura de Schopenhauer - Irvin D. Yalom

"Mas agora, pensando na jovem meditando, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram vítimas daquela excêntrica virada de evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milênios afora, construímos sem parar negações paliativas da finitude."

"Melhor aceitar a solução de Einstein e Spinoza: apenas inclinar a cabeça e bater no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver."

"Levo uma vida muito sóbria, não preciso de nada, exceto da liberdade de ter o que é realmente importante para mim: ler, pensar, meditar, ouvir música, jogar xadrez e caminhar com Rugby, meu cachorro."

"Viu muitos pacientes mudarem totalmente, mas continuarem sendo vistos do mesmo jeito pelo restante do grupo. Isso ocorre também nas famílias. Muitos pacientes passavam por maus bocados ao visitarem a casa dos pais: tinham que ficar atentos para não serem jogados no velho papel que a família lhes reservara e precisavam de muito esforço e energia para convencer pais e parentes de que tinham de fato mudado."

"As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até a menor nos atormenta."

"Nietzsche uma vez disse que, quando acordamos desanimados no meio da noite, os inimigos que derrotamos há muito tempo voltam para nos assombrar."

"– Julius, você me confunde, me impressiona seu jeito tão prosaico de falar na morte.
– Todos nós estamos morrendo, Bonnie. Só que eu sei meu prazo de validade melhor do que vocês."

"A popularidade não mostra o que é verdadeiro ou bom. Pelo contrário, nivela por baixo."

"Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma? Talvez as quatro grandes verdades fossem ligadas à cultura indiana. Talvez fossem verdades adequadas para 2.500 anos atrás, em um lugar oprimido pela pobreza, pela superpopulação, pela fome, pela doença, pela opressão das castas e pela falta de qualquer esperança em um futuro melhor. Mas seriam verdades para ela agora? Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou em uma vida melhor depois da morte visavam apenas aos pobres, aos sofridos, aos escravizados?"

"Quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros."

"– Estar satisfeito, precisar tão pouco dos outros. jamais querer a companhia de alguém... Isso parece bem solitário, Philip.
– Pelo contrário. No passado, quando eu queria a companhia dos outros, pedia o que não iam dar, ou melhor, não podiam dar. Aí, sim, vi o que era solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só. Eu busco a abençoada solidão."

"Desumano mesmo era quando eu deixava que minha autoestima flutuasse como uma cortiça de acordo com o que os outros achavam de mim."

"Acho que a vista do cume de uma montanha ajuda muito a ampliar os conceitos. (...) Tudo que é pequeno, some. Só fica o que é grande."

"Todo terapeuta experiente tinha um arsenal de 'técnicas para abrir mão' para usar na terapia. Mas a indústria simplista e esperta do perdão tinha crescido, promovido e comercializado esse aspecto da terapia e apresentado como se fosse algo totalmente novo. A enganação havia ganhado respeitabilidade por se misturar ao atual clima social e político mundial de perdão para afrontas como genocídio, escravidão e exploração. Até o papa tinha pedido perdão para os cruzados que saquearam Constantinopla no século XIII." 

"Lembrou-se dos grupos de pacientes com câncer em que ele tinha orientado havia alguns anos. Era frequente as pessoas falarem de uma fase de ouro, passado o pânico de constatar que iam morrer. Alguns disseram que o câncer os tinha deixado mais sensatos, mais realizados, enquanto outros mudaram suas prioridades na vida, ficaram mais fortes, aprenderam a recusar atividades de que não gostavam mais havia muito tempo e fazer coisas que de fato importavam, como amar a família e os amigos, observar a beleza das coisas em volta, sentir a mudança das estações. Mas muitos pacientes lamentavam que só tivesse aprendido a viver depois de seus corpos terem sido corroídos pelo câncer. As mudanças foram tão grandes (um paciente chegou a dizer que 'o câncer cura a neurose') que, por duas vezes, Julius lançou um desafio aos seus alunos na faculdade. Descreveu apenas as mudanças psicológicas de determinados pacientes e pediu que os alunos dissessem o tipo de tratamento que estavam recebendo. Todos ficaram surpresos ao saber que nenhuma terapia ou remédio tinha mudado tanto aqueles pacientes, apenas o fato de enfrentarem a morte."

A alma imoral - Nilton Bonder

"O apego ameaça e violenta a integridade de um ser humano da mesma maneira que uma traição. Somos capazes de medir a última, mas poucas vezes nos damos conta da violência que impomos à nossa alma. É, porém, entre esses dois estados de desequilíbrio que residem nossas grandes dificuldades na vida. E o mais fantástico é que eles estão sempre juntos. Não existe experiência de traição que não venha acompanhada de apego."

"Observemos um casal que vive uma relação de casamento. O desequilíbrio maior surge quando um dos dois dá um passo à frente em direção à sua vida. Esse passo, que é muito transgressivo em relação à sua situação acomodada, deveria gerar um passo também do cônjuge. Se isso acontecesse, ambos estariam equilibrados e sua dinâmica seria natural. No entanto, o que mais acontece como reação a um passo à frente é que o outro dá um passo para trás. O desequilíbrio então se estabelece e uma situação não dinâmica atravanca o processo vital. A maioria dos casamentos termina pela recorrência desse ato reflexo. Quando um cônjuge esboça transformações na relação, o outro cobra justamente os compromissos assumidos, dando um passo para trás. (...) A reação de dar um passo para trás – expondo carências, coletando justificativas ou evocando direitos – é um apego que, em si, é a maior das traições ao sonho assumido em um pacto."

"Todo traído é, sem dúvida, alguém que peca pelo apego. Em realidade, uma pessoa só pode se sentir traída se está às voltas com dificuldades de excesso de apego."

"As surpresas do relativo, das misturas, dos erros, das espontaneidades ou dos pecados fortalecem a alma e lhe ofertam seu nutriente mais importante: a evolução."

"Muitas coisas são feitas ou deixam de ser feitas por sacrifícios ao nada. Quantas pessoas poderíamos ter 'tirado para dançar' na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante. Quantas vezes deveríamos ter dito não em vez de nos desgastarmos para dissimular virtudes que são oferendas idólatras: oferendas ao deus expectativa, ao deus cobrança, ao deus culpa e assim por diante."

"É a alma que fica inconformada com os sacrifícios vazios do corpo e é ela a responsável pelos atrevimentos, ousadias, riscos e transgressões."

"Quantos casamentos são uma traição profunda à promessa de busca de uma vida de enriquecimento afetivo mútuo? Viver esse tipo de casamento, decerto após terem se esgotado todas as medidas possíveis para curar a relação, é uma forma de traição à alma bem mais séria do que um possível adultério representa traição ao corpo. Por corpo entenda-se o passado e o compromisso do passado. A fidelidade hipócrita é um compromisso com o passado que obstrui o presente e o futuro."

"Aquele que experimenta o exílio e chega a uma terra alienígena nada tem em comum com as pessoas daquele lugar e ninguém com quem conversar. Mas, se um segundo estrangeiro chegar, mesmo que ele seja de um lugar totalmente distinto do primeiro, os dois possuem muito em comum e se identificam, criando vínculos de forte amizade. Se não fossem estrangeiros, eles jamais teriam conhecido tão forte amizade e ligação."

"Aqueles que se permitem as transgressões da alma com certeza são vistos e recebidos pelos outros como estrangeiros. Os que mudam de emprego radicalmente, os que refazem relações amorosas, os que abandonam vícios, os que perdem medos, os que se libertam e os que rompem experimentam a solidão que só pode ser quebrada por outro que conheça essas experiências. A natureza da experiência pode ser totalmente distinta, mas eles se tornarão parceiros enquanto 'forasteiros'."

"Satã é a própria dificuldade que temos de distinguir a luz da escuridão. Muitas vezes a luz não está nem naquilo que promove a preservação, nem no que promove a transformação. Por interesses naturais à cultura e à moral, no entanto, nossa sociedade resolveu transformar Satã num espantalho que realmente nos afasta da mudança. É por medo dele que se obteve um instrumento a mais para manter as pessoas ocupadas em seus próprios padrões sem se permitir ousar e descobrir novas possibilidades da própria vida. Sua linguagem e sua imagem passaram a servir como porta-vozes da imutabilidade da tradição, da família e da propriedade. Sua fala eloquente e repleta de exemplos da vida e da realidade são poderosamente paralisadoras. O mundo dos medos, das divisões, das defesas e do controle são produtos dessa fala das consciências humanas que demanda a convencionalidade."

"Por mais de um milênio, da Idade Média até o período moderno, a Igreja Romana sustentou o patrulhamento ideológico e teológico, impondo a lei através de seus braços executivos, entre eles a Inquisição. As bruxas ou os judaizantes queimados eram as prostitutas, os contestadores, os visionários. Eram não apenas o povo ou o grupo com quem Jesus se identificava, mas, simbolicamente, o próprio Jesus."

"O Jesus histórico não é o adorador do que é 'correto', da família, da propriedade e da tradição: sua origem perigosa transgrediu culturas e morais, e ainda hoje ele seria crucificado. Os primeiros a crucificá-lo seriam aqueles que não suportariam sua compaixão e complacência para com os homossexuais, os delinquentes, os marginais. Não seria absurdo dizer, portanto, que em certos círculos tradicionais de devoção cristã o personagem histórico ainda hoje seria aprisionado e crucificado."

"Ainda cometeremos muitas crucificações, mas a derradeira, a que realmente está em jogo, é a nossa."

Água fresca para as flores - Valérie Perrin

"É sempre assim com a morte. Quanto mais antiga ela é, menos poder tem sobre os vivos. O tempo aniquila a vida. O tempo aniquila a morte."

"– Eu anoto a data de todos os enterros e exumações.
– Eu não sabia que isso fazia parte das suas atribuições.
– Não faz. Porém, se só fizéssemos o que faz parte das nossas atribuições, a vida seria muito triste."

"Existem mais de mil fotografias espalhadas pelo meu cemitério. Fotos em preto e branco, sépia, em cores vivas ou gastas. No dia em que todas essas fotos foram tiradas, nenhum dos homens, das crianças e das mulheres que posavam inocentemente diante da lente podiam pensar que aquele instante ia representá-los para toda a eternidade. Era o dia de um aniversário ou de um almoço em família. Um passeio pelo parque no domingo, uma foto de casamento, do baile de formatura, do Ano-Novo. Um dia em que eles estavam um pouco mais bonitos, um dia em que estavam todos reunidos, um dia específico em que estavam mais elegantes. Ou então de farda militar, roupa de batismo ou primeira comunhão. Apenas inocência no olhar de todas essas pessoas que sorriem sobre seus túmulos."

"Quero ficar sozinha. Como toda noite. Não falar com ninguém. Ler, ouvir rádio e tomar um banho de banheira. Fechar as cortinas. Enrolar-me no meu quimono de seda rosa. Só ficar à vontade. Depois que os portões são fechados, o tempo é meu. Sou a única dona dele. É um luxo ser dona do próprio tempo. Acho que é um dos maiores luxos que o ser humano pode dar a si mesmo."

"Por que nos sentimos atraídos por livros como nos sentimos por pessoas? Por que nos sentimos atraídos por capas como por um olhar, uma voz que parece familiar, conhecida, uma voz que nos faz desviar do caminho, nos faz erguer os olhos, que chama a nossa atenção e que pode mudar o curso da nossa existência?" 

"Definitivamente era muito mais fácil abrir o coração para uma completa desconhecida do que em uma reunião de família."

"– E Deus em tudo isso? – pergunta o padra Cédric. – Será que essas pessoas todas acreditam em Deus?
Nono hesita antes de responder.
– Algumas passam a acreditar no dia em que Ele as livra dos idiotas. Eu já vi viúvas alegres e viúvos felizes. Posso dizer que, nesses casos, eles agradecem a Deus com muito afinco, senhor padre... Ah, é só brincadeira, não faça essa cara. Seu Deus alivia muito a tristeza. É simples: se Ele não existisse, íamos ter que inventá-lo."

"Uma rosa de plástico é como uma luminária que tenta imitar o sol."

"– Violette, não sei o que você e Deus andaram fazendo hoje de manhã na hora do café – me diz o padre, muitas vezes –, mas você parece muito irritada com Ele.
– É que Ele nunca limpa os pés antes de entrar na minha casa – sempre respondo."

"Acreditamos que a morte é uma ausência, quando, na verdade, é uma presença secreta."

"– Quando um homem chega na casa da amante, tem que sentir que está de férias, não em casa.
– Nada disso é muito católico, condessa.
– Padre, as pessoas têm que pecar, senão o seu confessionário ficaria vazio. O pecado é o seu capital. Se as pessoas não fizessem nada de errado, não haveria ninguém nos bancos da sua igreja."

"Violette, a hera está sufocando as árvores. Nunca se esqueça de podar. Nunca. Assim que seus pensamentos começarem a apontar para a escuridão, pegue a tesoura e pode toda essa desgraça."

"– Trouxe uma lembrança de cada viagem para você.
– A mala também?
– Claro. Você também vai embora um dia."

Os testamentos - Margaret Atwood

"Eu podia me preparar para o sangue que logo escorreria dentre minhas pernas: isso já acontecera com muitas meninas na escola. Deus não podia ter arrumados as coisas de outro jeito? Mas Ele tinha grande interesse em sangue, o que sabíamos pelos versículos das Escrituras que haviam sido lidos para nós: sangue, purificação, mais sangue, mais purificação, sangue para purificação dos impuros, ainda que não fosse para você tocá-lo com as mãos. O sangue era sujo, em especial quando vinha de mulheres, mas antigamente Deus gostava de recebê-lo em Seus altares."

"Diziam coisas apaziguadoras como Você tem que ser forte. Estavam tentando ajudar. Mas pode ser uma grande pressão para uma pessoa ouvir que precisa ser forte." 

"Me apercebi de que certos homens gostam de implicar com mulheres bonitas."

"Ela também olhou para dentro de si, e viu o abismo."

"Os músculos do meu rosto começavam a doer. Em certas condições, sorrir é um exercício físico."

"Cuidado com o que você deseja. Eu já desejei muitas coisas que depois vim a receber. Se você quer fazer Deus rir, conte-lhe os seus planos, conforme se dizia antigamente; hoje, no entanto, a ideia de Deus dando risada é quase uma blasfêmia. Agora Deus se tornou um sujeito supersério."

"Onde existir vácuo, a mente o preencherá com avidez. O medo sempre está à mão para preencher qualquer vazio, assim como a curiosidade."

"– Ela te olha como se realmente te visse.
Já tanta gente havia me olhado sem me ver.
– Acho que eu ia gostar – falei.
– Não – disse Becka. – É por isso que ela assusta tanto."

"A memória era uma coisa tão cruel. Não conseguimos lembrar do que foi que esquecemos. Do que nos obrigaram a esquecer. Do que tivemos que esquecer, para poder fingir que vivemos aqui com alguma normalidade."

Tomar a vida nas próprias mãos - Gudrun Burkhard

"O que acarretará, mais tarde, no ser humano, o fato de ele ter crescido num ambiente de fumantes, ou de não ter podido saborear as sopinhas? Ou ainda, de não ter visualizado a natureza – por exemplo, nunca ter olhado 'aquela figueira' nem ouvido os sons dos passarinhos: ao contrário, ter tido como panorama edifícios cinzas, de dentro de um apartamento luminoso, ofuscante, e escutado apenas ruídos mecânicos de enceradeiras, máquinas de lavar e aviões passando por sobre sua cabeça?"

"Não é fácil ao jovem encontrar-se. A distinção do que é realmente dele e o que é resultado da influência dos pais precisa ser feita. Por exemplo, 'Será que eu quero mesmo ser engenheiro'
– ou médico, etc – 'ou esta foi uma ideia que veio dos meus pais?' Talvez seja um desejo que o pai não conseguiu realizar e quer ver realizado no filho. Ou 'Fui educado como católico; será que essa é a minha religião?' Talvez ele participe com todo o entusiasmo no movimento de jovens da igreja, mas de repente se dá conta de que 'não é nada disso'."

"Os adultos são apressados, angustiados, querem sempre colher frutos ainda imaturos, principalmente em relação aos filhos."

"A liberdade interior é algo mais sutil. É o respeito pela personalidade do outro. Implica a conscientização, no adulto, de que agora ele tem uma individualidade diante de si, tal qual ele próprio."

"Quando a gente não pode falar, percebe o quanto as pessoas falam por falar; eu percebo que poucas suportam o silêncio."

"Aprendi que a gente não deve comparar-se com ninguém. A comparação só traz sofrimento. Percebi minhas dificuldades e as aceitei. Não me sentia mal ao ver alguém pintar bonito; pelo contrário, eu admirava."

"Não olhe o que os outros fazem
Os outros são tantos!
Você entra num jogo
que nunca quer parar.

Pelos caminhos de Deus ande,
não deixe outro ser o guia.
Assim você caminha direto e reto,
e mesmo que ande sozinho."

"O eu quer aparecer, brilhar e irradiar; mas é claro que sofre uma porção de ameaças e, para poder posicionar-se, utiliza dos papéis sociais, aqueles que a vida exige de nós, como por exemplo, de boa filha ou bom filho, de boa esposa ou marido, de excelente profissional, ou já de ser mãe ou pai. Esses papéis todos podem antepor-se à verdadeira personalidade como máscaras superpostas, e o eu pode desaparecer atrás delas, como que sufocado."

"Conhecem-se pessoas diferentes, fazem-se novas amizades e contatos pelo mundo, e a gente adquire um novo senso de irmandade. A gente chega mesmo a ver quão unilaterais somos, e que precisamos uns das qualidades dos outros, para formarmos o todo. Creio que é mesmo tempo de quebrar as fronteiras internas."

Véspera - Carla Madeira

"A memória é um estômago em permanente refluxo, e a culpa é ácida como um suco gástrico."

"Não batam portas, pois. Não encarem, falem baixo, evitem os solavancos. Sofrer em paz é o mínimo que se espera merecer."

"Os convidados se sentaram de maneira aleatória, embora o destino não conheça essa palavra, cada acaso tem poderes de deslocar os acontecimentos e eles se tornam o que são. Como em um jogo de tabuleiro, a disposição das peças em uma mesa contém em si o desenlace." 

Sobre a brevidade da vida - Sêneca

"Definitivamente, os relógios mentem: o tempo não se mede de forma tão objetiva assim."

"A vida inteira é necessária para se aprender a viver e – talvez isto o faça pensar ainda mais – a vida inteira é necessária para se aprender a morrer."

"E, portanto, não há razão para pensar que um homem viveu muito porque tem cabelos grisalhos ou rugas; ele não viveu muito, apenas existiu muito."

"Alguns homens, de fato, até mesmo organizam coisas que estão além de sua vida – enormes mausoléus, as dedicatórias de serviços públicos, jogos fúnebres e exéquias gloriosas."

"A vida abandonou alguns nas suas primeiras lutas, antes que pudessem atingir o máximo de sua ambição. Outros, ao se submeterem a mil indignidades até atingir a posição suprema, são possuídos pelo pensamento infeliz de que apenas labutaram tanto por uma vã inscrição no túmulo. Alguns ainda, que chegaram à extrema velhice, ao mesmo tempo que nutriam novas esperanças como se ainda estivessem na juventude, sucumbem à fraqueza em meio a seus grandes e ansiosos esforços. Vergonhoso é aquele cujo fôlego o abandona em meio a uma provação quando, já avançado em anos e ainda cortejando os aplausos de um círculo de ignorantes, defende a vil causa de algum litigante. Vergonhoso é aquele que, exaurido mais por seu modo de vida do que por seu trabalho, sucumbe em meio aos próprios deveres. Vergonhoso é aquele que, ao morrer, arranca um sorriso do herdeiro a quem muito tempo fez esperar."

Morte em Veneza - Thomas Mann

"As observações e as vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que seriam facilmente esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões ocupam-no mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado, transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engendra o original, o belo ousado e surpreendente, o poema."

"Não há nada mais estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista – que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora, sem um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se, e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão."

"O ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito."

Em busca de sentido - Viktor Frankl

"O escritor e psiquiatra Viktor E. Frankl costuma perguntar a seus pacientes que estão sofrendo muitos tormentos, grandes e pequenos: 'Por que não opta pelo suicídio?' É a partir das respostas a essa pergunta que ele encontra, frequentemente, as linhas centrais da psicoterapia a ser usada."

"A única coisa que sobrou é 'a última liberdade humana' – a capacidade de 'escolher a atitude pessoal que se assume diante de determinado conjunto de circunstâncias'."

"Nós sabemos dizer até que ponto é verdade que a pessoa a tudo se acostuma, sem dúvida! Mas ninguém pergunte de que modo..."

"Absorta em si mesma, a fantasia da pessoa sempre volta a reviver experiências passadas. Mas o que ocupa o pensamento não são as grandes experiências, e sim, muitas vezes, um fato corriqueiro, as coisas mais insignificantes de sua vida anterior. Na lembrança nostálgica, elas se apresentam sublimes ao prisioneiro. Distanciada da vida real e do presente, voltada para o passado, a vida interior recebe um cunho peculiar. O mundo e a vida lá fora estão muito distantes. O espírito tem saudades deles: a gente anda de bonde, chega em casa, abre a porta da frente, o telefone toca, a gente caminha para atender e acende a luz do quarto – são detalhes aparentemente irrisórios como esses que o prisioneiro gosta de lembrar. A doce recordação desses pormenores o comove até as lágrimas!"

"A maioria dispunha de algo que os sustentava, e geralmente se tratava de um pedaço de futuro. Não deixa de ser uma peculiaridade do ser humano que ele somente pode existir propriamente com uma perspectiva futura."

"Viver não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento."

"Quando um homem descobre que que seu destino lhe reservou um sofrimento, tem que ver nesse sofrimento também uma tarefa sua, única e original. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o cosmo dentro deste destino sofrido. Ninguém pode assumir dela o destino, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta esse sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular."

"O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à 'vida', mas também ao sofrimento e à morte."

"O efeito direto do ser exemplo sempre é maior do que o efeito de palavras. Volta e meia, porém, também a palavra tinha efeito, quando, por alguma circunstância externa, aumentava o eco interior."

"Ela sabe do 'porquê' de sua existência – e por isso também conseguirá suportar quase todo 'como'."

"De tudo isso podemos aprender que existem sobre a terra duas raças humanas e realmente apenas essas duas: a 'raça' das pessoas direitas e a das pessoas torpes. Ambas as 'raças' estão amplamente difundidas. Insinuam-se e infiltram-se em todos os grupos: não há grupos constituídos exclusivamente de pessoas decentes, nem unicamente de pessoas torpes. Neste sentido, não existe grupo de 'raça pura'."

"O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios."

"O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente. O que ele necessita não é a descarga de tensão a qualquer custo, mas antes o desafio de um sentido em potencial à espera de seu cumprimento."

"Cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir realização. Nisso a pessoa não pode ser substituída, nem sua vida ser repetida. Assim, a tarefa de cada um é tão singular como a sua oportunidade específica de levá-la a cabo."

"Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora. Parece-me que nada estimula tanto o senso de responsabilidade de uma pessoa como essa máxima, a qual convida a imaginar primeiro que o presente é o passado e, em segundo lugar, que o passado ainda pode ser alterado e corrigido."

"Quando já não somos capazes de mudar uma situação – podemos pensar numa doença incurável, como um câncer que não se pode mais operar –, somos desafiados a mudar nós próprios."

"Sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício."

"É preciso deixar perfeitamente claro, no entanto, que o sofrimento não é de modo algum necessário para encontrar sentido. Insisto apenas que o sentido é possível mesmo a despeito do sofrimento – desde que, naturalmente, seja inevitável. Se ele fosse evitável, no entanto, a coisa significativa a fazer seria eliminar sua causa, fosse ela psicológica, biológica ou política. Sofrer desnecessariamente é ser masoquista, e não heroico."

"O mais importante, no entanto, é o terceiro caminho para o sentido da vida: mesmo uma vítima desamparada, numa situação sem esperança, enfrentando um destino que não pode mudar, pode erguer-se acima de si mesma e, assim, mudar-se a si mesma. Pode transformar a tragédia pessoal em triunfo."