O Diabo no Imaginário Cristão - Carlos Roberto F. Nogueira

“Seja na forma de alegorias, em que um novo significante reveste o antigo significado – como a transformação do mito de Orfeu na alegoria do Redentor –, seja na busca de se superpor ao universo simbólico da Antiguidade, o Cristianismo entra em compromissos com as crenças que o precedem. De modo consciente ou não, incorpora as divindades, ritos e festas religiosas já institucionalizadas na tradição, dotando-os de um outro discurso, de uma nova roupagem, que, a princípio, mal conseguem ocultar sua origem pagã.”

“Embora acreditando que Jesus havia vindo ao mundo para salvar o homem do poder do Diabo, a Igreja deixou de sustentar que ele estava totalmente vencido. Se assim fosse, não haveria razão para a continuada existência da Igreja.”

“Quanto mais belo e doce fosse um aspecto da vida, sob a superfície, o Demônio sordidamente trabalhava e espreitava, para agarrar o desavisado.”

“No século X, Ratherius, bispo de Verona, julga necessário relembrar a seus subordinados que Satã e suas legiões, por mais poderosos que fosse, estavam submissos à vontade de Deus todo-poderoso. Afirmação que deveria estar perfeitamente evidente, ao menos para o clero, e, no entanto, é precisamente esse clero que sublinha a todo momento a onipotência de Satã. As pregações eclesiásticas tendem a destacar cada vez mais o Mal e as suas consequências, a bem-aventurança cedendo lugar progressivamente à danação, sendo o Bom cada vez mais intuído, implícito na dissipação dos terrores do Mal e do Castigo Eterno.”

“O grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio homem, meio bode, com chifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas pontiagudas. A essa combinação a imaginação cristã acrescenta um ingrediente essencial: as asas de um anjo. Contudo, como se tratava de anjos caídos, as asas não poderiam ser de um pássaro que voa à luz do dia, e sim as de um morcego, que ama as trevas...”

“Diferentemente dos deuses pagãos e mesmo da divindade do Antigo Testamento, em alguns aspectos, o Deus Cristão era totalmente e imaculadamente bom, sem qualquer partícula de mal em sua natureza. A grande dificuldade para uma crença monoteísta era conciliar a misericórdia e a justiça divinas. O resultado era uma tensão entre a figura de Cristo como Salvador e a figura de Cristo como juiz. O mesmo cristo que é amor e misericórdia é aquele que separará no final os justos dos maus e condenará estes últimos à punição eterna ‘no eterno fogo preparado pelos Demônios e seus anjos’.”

“C. G. Jung dizia que a figura de Cristo era tão acentuadamente perfeita que necessitava de um complemento psíquico para restaurar o equilíbrio. Na presença de uma evidência do Mal no mundo, os cristãos eram levados a aumentar o poder de Satã e de suas forças e, ao mesmo tempo, a complementar a divindade de Jesus com a sua antítese maligna.”

“Tão feroz era a ação de Cristo como Juiz, nessas pinturas, que toda a misericórdia tinha que ser transferida para outras figuras, como a Virgem Maria e João Batista, que apareciam suplicando a Jesus pela salvação dos fiéis.”

“A história do Diabo confunde-se com a história do próprio Cristianismo. (...) Era necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do Mal. Era preciso que fosse visto, tateado, tocado, para que o Bem surgisse como a graça suprema – o Belo e o Divino, em oposição ao Horrível e Demoníaco.”