O ovo apunhalado - Caio Fernando Abreu

"Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê."

"É verdade, eu o amava. Não com esse amor de carne, de querer tocá-lo, possuí-lo e saber coisas de dentro dele. Era um amor diferente, quase assim feito uma segurança de sabê-lo sempre ali."

"Não sei se você sabe que muitas pessoas trazem a mesma marca daquele menino. Algumas, a maioria delas, passam a vida inteira sem saber disso, outras descobrem cedo, outras tarde, algumas tarde demais, algumas nunca. Sei que se o menino não tivesse ido lá, não teria descoberto, seria no máximo um desses pescadores que olham o mar com olhar profundo. Você deve ter notado que há os que olham o mar com olhar profundo e os que olham o mar com ar torvo. Não só o mar. Os que trazem a marca, mesmo que não saibam dela, esses olham as coisas com olhar de sangue. Os que sabem da marca ganham uma luz estranha e uma lentidão e um jeito de quem sabe todas as coisas. Os outros todos olham todas as coisas com um olhar torvo. Os outros são escuros, estúpidos, pobres. Os outros não sabem. Quando aquele menino foi lá pela primeira vez, tinha apenas um olhar de sangue – mas quando foi pela última vez, seu olhar já era de luz, era todo lentidão, complacência, compreensão, todo ele amor e sol. Ele não era um menino comum, isso eu soube desde que o vi. Ainda que andasse vestido da mesma maneira que os outros, tivesse as mesmas conversas e as mesmas brincadeiras, eu sempre pressenti nele aquele sangue que não corria nos outros. Às vezes, fazia perguntas que assustavam. E ficava horas sentado num lugar olhando qualquer coisa sem importância, uma pedra, um inseto, um grão de areia. Ninguém compreendia. Andava sozinho por lugares desconhecidos e voltava com o sangue dos olhos quase em luz."

"Estou acostumado com a incompreensão alheia, com a minha própria incompreensão, mais do que tudo."

"Você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será mais o mesmo. O que vem depois, não se sabe. Há aquele olhar de que lhe falei, e aquelas outras coisas, mas nada sei de você por dentro, depois de ver."

"Fizera seu aprendizado de solidão enquanto as coisas sentidas a cada dia tornavam-se mais e mais semelhantes, para finalmente permanecerem numa massa informe a escorrer monótona por dentro dele, alterando-se apenas em insignificantes cintilações cotidianas. Apenas reagia."

"...e já não tomo nenhuma droga desde que resolvi deixar que tudo secasse para que viesse à tona apenas o que quisesse vir, sem que eu o chamasse."

O corpo e seus símbolos - Jean-Yves Leloup

"O corpo é o inconsciente visível."

"Chega um momento em que nossa imagem de perfeição torna-se um obstáculo à nossa própria perfeição."

"Às vezes, o que chamamos de amor não é senão posse, dependência, necessidade. Essa forma de amor é uma forma de sofrimento. Na cultura ocidental, pelo número de canções e de romances tristes que ouvimos e lemos, temos a impressão de que não existe amor feliz. Todas as histórias de amor são, ao mesmo tempo, histórias apaixonadas, possessivas, ciumentas e, frequentemente, dolorosas."

"Temos de passar dessa atitude onde somos o objeto da nossa doença, o escravo da nossa doença, para o estado onde somos o sujeito da nossa doença, onde somos capazes de agir sobre os nossos sintomas."

O conto da aia - Margaret Atwood

"Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Ninguém disse quando."

"Quis a revista com uma força que fez doerem as pontas de meus dedos. Ao mesmo tempo vi esse meu desejo como algo trivial e absurdo, porque outrora havia menosprezado e considerado essas revistas muito levianamente. Eu as havia lido em consultórios de dentistas e às vezes em aviões; as havia comprado para levar para quartos de hotel, um artifício para preencher tempo vago enquanto estava esperando por Luke. Depois de folheá-las eu as jogava fora, pois eram infinitamente descartáveis, e um ou dois dias depois não seria capaz de me lembrar do que tinha nelas. Mas eu me lembrava agora. O que havia nelas era promessa. Elas lidavam com transformações, sugeriam uma série infindável de possibilidades, estendendo-se como os reflexos em dois espelhos postos de frente um para o outro, prolongando-se ao infinito, réplica após réplica até o ponto de fuga. Sugeriam uma aventura após a outra, um guarda-roupa após o outro, uma aprimoração após a outra, um homem após o outro. Elas sugeriam rejuvenescimento, dor vencida e transcendida, amor eterno. A verdadeira promessa nelas era a imortalidade."

"As pessoas são capazes de fazer qualquer coisa para não admitir que suas vidas não têm significado."

"Sempre há alguma coisa para ocupar uma mente inquisitiva."

"A humanidade é tão adaptável, diria minha mãe. É verdadeiramente espantoso as coisas com que as pessoas conseguem se habituar, desde que existam algumas compensações."

"Existe um certo consolo que pode ser encontrado na rotina."