O deserto dos tártaros - Dino Buzzati

"Pareceu-lhe achar-se entre homens de outra raça, numa terra estranha, num mundo duro e ingrato."

"Talvez tudo seja assim. Acreditamos que ao redor haja criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira; preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós."

"Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém."

"Datas que antigamente pareciam inverossímeis, de tão remotas, agora se aproximavam repentinamente do horizonte próximo, recordando os duros prazos da vida."

"E, subitamente, os antigos terrores caíram por terra, os pesadelos afrouxaram-se, a morte perdeu seu vulto enregelante, transformando-se em coisa simples e de acordo com a natureza."

A cura de Schopenhauer - Irvin D. Yalom

"Mas agora, pensando na jovem meditando, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram vítimas daquela excêntrica virada de evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milênios afora, construímos sem parar negações paliativas da finitude."

"Melhor aceitar a solução de Einstein e Spinoza: apenas inclinar a cabeça e bater no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver."

"Levo uma vida muito sóbria, não preciso de nada, exceto da liberdade de ter o que é realmente importante para mim: ler, pensar, meditar, ouvir música, jogar xadrez e caminhar com Rugby, meu cachorro."

"Viu muitos pacientes mudarem totalmente, mas continuarem sendo vistos do mesmo jeito pelo restante do grupo. Isso ocorre também nas famílias. Muitos pacientes passavam por maus bocados ao visitarem a casa dos pais: tinham que ficar atentos para não serem jogados no velho papel que a família lhes reservara e precisavam de muito esforço e energia para convencer pais e parentes de que tinham de fato mudado."

"As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até a menor nos atormenta."

"Nietzsche uma vez disse que, quando acordamos desanimados no meio da noite, os inimigos que derrotamos há muito tempo voltam para nos assombrar."

"– Julius, você me confunde, me impressiona seu jeito tão prosaico de falar na morte.
– Todos nós estamos morrendo, Bonnie. Só que eu sei meu prazo de validade melhor do que vocês."

"A popularidade não mostra o que é verdadeiro ou bom. Pelo contrário, nivela por baixo."

"Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma? Talvez as quatro grandes verdades fossem ligadas à cultura indiana. Talvez fossem verdades adequadas para 2.500 anos atrás, em um lugar oprimido pela pobreza, pela superpopulação, pela fome, pela doença, pela opressão das castas e pela falta de qualquer esperança em um futuro melhor. Mas seriam verdades para ela agora? Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou em uma vida melhor depois da morte visavam apenas aos pobres, aos sofridos, aos escravizados?"

"Quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros."

"– Estar satisfeito, precisar tão pouco dos outros. jamais querer a companhia de alguém... Isso parece bem solitário, Philip.
– Pelo contrário. No passado, quando eu queria a companhia dos outros, pedia o que não iam dar, ou melhor, não podiam dar. Aí, sim, vi o que era solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só. Eu busco a abençoada solidão."

"Desumano mesmo era quando eu deixava que minha autoestima flutuasse como uma cortiça de acordo com o que os outros achavam de mim."

"Acho que a vista do cume de uma montanha ajuda muito a ampliar os conceitos. (...) Tudo que é pequeno, some. Só fica o que é grande."

"Todo terapeuta experiente tinha um arsenal de 'técnicas para abrir mão' para usar na terapia. Mas a indústria simplista e esperta do perdão tinha crescido, promovido e comercializado esse aspecto da terapia e apresentado como se fosse algo totalmente novo. A enganação havia ganhado respeitabilidade por se misturar ao atual clima social e político mundial de perdão para afrontas como genocídio, escravidão e exploração. Até o papa tinha pedido perdão para os cruzados que saquearam Constantinopla no século XIII." 

"Lembrou-se dos grupos de pacientes com câncer em que ele tinha orientado havia alguns anos. Era frequente as pessoas falarem de uma fase de ouro, passado o pânico de constatar que iam morrer. Alguns disseram que o câncer os tinha deixado mais sensatos, mais realizados, enquanto outros mudaram suas prioridades na vida, ficaram mais fortes, aprenderam a recusar atividades de que não gostavam mais havia muito tempo e fazer coisas que de fato importavam, como amar a família e os amigos, observar a beleza das coisas em volta, sentir a mudança das estações. Mas muitos pacientes lamentavam que só tivesse aprendido a viver depois de seus corpos terem sido corroídos pelo câncer. As mudanças foram tão grandes (um paciente chegou a dizer que 'o câncer cura a neurose') que, por duas vezes, Julius lançou um desafio aos seus alunos na faculdade. Descreveu apenas as mudanças psicológicas de determinados pacientes e pediu que os alunos dissessem o tipo de tratamento que estavam recebendo. Todos ficaram surpresos ao saber que nenhuma terapia ou remédio tinha mudado tanto aqueles pacientes, apenas o fato de enfrentarem a morte."

A alma imoral - Nilton Bonder

"O apego ameaça e violenta a integridade de um ser humano da mesma maneira que uma traição. Somos capazes de medir a última, mas poucas vezes nos damos conta da violência que impomos à nossa alma. É, porém, entre esses dois estados de desequilíbrio que residem nossas grandes dificuldades na vida. E o mais fantástico é que eles estão sempre juntos. Não existe experiência de traição que não venha acompanhada de apego."

"Observemos um casal que vive uma relação de casamento. O desequilíbrio maior surge quando um dos dois dá um passo à frente em direção à sua vida. Esse passo, que é muito transgressivo em relação à sua situação acomodada, deveria gerar um passo também do cônjuge. Se isso acontecesse, ambos estariam equilibrados e sua dinâmica seria natural. No entanto, o que mais acontece como reação a um passo à frente é que o outro dá um passo para trás. O desequilíbrio então se estabelece e uma situação não dinâmica atravanca o processo vital. A maioria dos casamentos termina pela recorrência desse ato reflexo. Quando um cônjuge esboça transformações na relação, o outro cobra justamente os compromissos assumidos, dando um passo para trás. (...) A reação de dar um passo para trás – expondo carências, coletando justificativas ou evocando direitos – é um apego que, em si, é a maior das traições ao sonho assumido em um pacto."

"Todo traído é, sem dúvida, alguém que peca pelo apego. Em realidade, uma pessoa só pode se sentir traída se está às voltas com dificuldades de excesso de apego."

"As surpresas do relativo, das misturas, dos erros, das espontaneidades ou dos pecados fortalecem a alma e lhe ofertam seu nutriente mais importante: a evolução."

"Muitas coisas são feitas ou deixam de ser feitas por sacrifícios ao nada. Quantas pessoas poderíamos ter 'tirado para dançar' na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante. Quantas vezes deveríamos ter dito não em vez de nos desgastarmos para dissimular virtudes que são oferendas idólatras: oferendas ao deus expectativa, ao deus cobrança, ao deus culpa e assim por diante."

"É a alma que fica inconformada com os sacrifícios vazios do corpo e é ela a responsável pelos atrevimentos, ousadias, riscos e transgressões."

"Quantos casamentos são uma traição profunda à promessa de busca de uma vida de enriquecimento afetivo mútuo? Viver esse tipo de casamento, decerto após terem se esgotado todas as medidas possíveis para curar a relação, é uma forma de traição à alma bem mais séria do que um possível adultério representa traição ao corpo. Por corpo entenda-se o passado e o compromisso do passado. A fidelidade hipócrita é um compromisso com o passado que obstrui o presente e o futuro."

"Aquele que experimenta o exílio e chega a uma terra alienígena nada tem em comum com as pessoas daquele lugar e ninguém com quem conversar. Mas, se um segundo estrangeiro chegar, mesmo que ele seja de um lugar totalmente distinto do primeiro, os dois possuem muito em comum e se identificam, criando vínculos de forte amizade. Se não fossem estrangeiros, eles jamais teriam conhecido tão forte amizade e ligação."

"Aqueles que se permitem as transgressões da alma com certeza são vistos e recebidos pelos outros como estrangeiros. Os que mudam de emprego radicalmente, os que refazem relações amorosas, os que abandonam vícios, os que perdem medos, os que se libertam e os que rompem experimentam a solidão que só pode ser quebrada por outro que conheça essas experiências. A natureza da experiência pode ser totalmente distinta, mas eles se tornarão parceiros enquanto 'forasteiros'."

"Satã é a própria dificuldade que temos de distinguir a luz da escuridão. Muitas vezes a luz não está nem naquilo que promove a preservação, nem no que promove a transformação. Por interesses naturais à cultura e à moral, no entanto, nossa sociedade resolveu transformar Satã num espantalho que realmente nos afasta da mudança. É por medo dele que se obteve um instrumento a mais para manter as pessoas ocupadas em seus próprios padrões sem se permitir ousar e descobrir novas possibilidades da própria vida. Sua linguagem e sua imagem passaram a servir como porta-vozes da imutabilidade da tradição, da família e da propriedade. Sua fala eloquente e repleta de exemplos da vida e da realidade são poderosamente paralisadoras. O mundo dos medos, das divisões, das defesas e do controle são produtos dessa fala das consciências humanas que demanda a convencionalidade."

"Por mais de um milênio, da Idade Média até o período moderno, a Igreja Romana sustentou o patrulhamento ideológico e teológico, impondo a lei através de seus braços executivos, entre eles a Inquisição. As bruxas ou os judaizantes queimados eram as prostitutas, os contestadores, os visionários. Eram não apenas o povo ou o grupo com quem Jesus se identificava, mas, simbolicamente, o próprio Jesus."

"O Jesus histórico não é o adorador do que é 'correto', da família, da propriedade e da tradição: sua origem perigosa transgrediu culturas e morais, e ainda hoje ele seria crucificado. Os primeiros a crucificá-lo seriam aqueles que não suportariam sua compaixão e complacência para com os homossexuais, os delinquentes, os marginais. Não seria absurdo dizer, portanto, que em certos círculos tradicionais de devoção cristã o personagem histórico ainda hoje seria aprisionado e crucificado."

"Ainda cometeremos muitas crucificações, mas a derradeira, a que realmente está em jogo, é a nossa."