A Bagagem do Viajante - José Saramago

"Se eu tiver um palácio e lhe chamar 'a minha barraca', afasto com isso o raio que é atraído pelos lugares altos?"

"Ao contrário do que afirmam os ingênuos (todos os somos uma vez por outra), não basta dizer a verdade. De pouco ela servirá ao trato das pessoas se não for crível, e talvez devesse até ser essa a sua primeira qualidade. A verdade é apenas meio caminho, a outra metade chama-se credibilidade. Por isso há mentiras que passam por verdades, e verdades que são tidas por mentiras."

“E se lhe doer a cabeça, é bom sinal: também, ao que dizem, nascer é um sofrimento.”

“No meu fraco entender, as verdades, morais ou imorais (e sobretudo estas), deveriam andar bem à vista de toda a gente, como a cor dos olhos.”

“Não invento nada. Faço esta declaração imediata porque adivinho já os sorrisos solertes ou desconfiados daquela gente para quem o extraordinário é sempre sinônimo de mentira. Essas pobres pessoas não sabem que o mundo está cheio de coisas e de momentos extraordinários. Não os vêem, porque para eles o mundo aparece como coberto de cinzas, comido de verdete baço, povoado de figuras que usam roupas iguais e falam da mesma maneira, com gestos repetidos sobre gestos já feitos por outros desaparecidos seres. É gente para quem talvez não haja remédio, mas a quem devamos continuar a dizer que o mundo e o que está nele não são o tão pouco que julgam.”

“Como qualquer pessoa que do álcool faça apenas consumo normal ou abaixo da média, tenho um certo receio instintivo de bêbados. Para mim, saíram da humanidade do mundo, e criaram por lá umas leis que não conheço.”

“Mas as oportunidades e situações é que fazem e desfazem os homens.”

“Talvez a fraqueza de cada um de nós não seja irremediável. A vida está aí a nossa espera, quem sabe se para tirar a prova real do que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”

“Afinal, não é muito grande a diferença que há entre um dicionário de biografias e um vulgar cemitério. (…) Mas o visitante fará bem em não se deixar confundir pelos alçados de arquiteto, pelas esculturas e cruzes, pelas carpideiras de mármore, por todo o cenário que a morte pomposa desde sempre aprecia. Igualmente deverá dar atenção, se está em campo aberto, sem referências, ao sítio onde põe os pés, não vá acontecer que debaixo dos seus sapatos se encontre o maior homem do mundo.”

“Demasiado esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custas deles, mas não dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstrato, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por obra, graça e virtude da refração.”

“Este país de gente calada, que dificilmente junta duas ideias de forma inteligível, sem os bordões onomatopaicos a que a frase se vai laboriosamente encostando – é, ao mesmo tempo, um dos países em que mais se fala. Compreende-se por quê. Aquelas a quem é dada a autoridade e às vezes a ordem de falar, sabendo que falam para uma população de alheados, usam e abusam do verbo, numa espécie de jovial impunidade. De mais sabem eles que não terão contraditores, que ninguém lhes apontará as incoerências, os ilogismos, as contradições, os atentados contra a verdade, os erros de gramática. Em cada duas falas, quantas vezes repetidas no pouco vocabulário e nenhuma no estilo, há uma cápsula de silêncio protetor que, ao parecer, nada poderá quebrar ou sequer fender.”

“Uma dessas histórias, a mais breve que eu conheço, está contada em duas linhas e é isto apenas: 'E disse Deus: Faça-se a luz. E foi feita a luz.' (…) As velhas histórias pesam. Afirmam que a luz se fez e procedem hipnoticamente por repetição. Entretanto, o espírito cercado levanta a cabeça e pergunta: 'Qual luz? Onde? Para quem?'”

“E quando a fita acabava, voltávamos a casa, de coração apertado, com medo das sombras, das esquinas, do guarda-noturno, da escada sem luz. Toda a noite sonhávamos e suávamos de aflição. Bons tempos. Agora, os Dráculas e outros vampiros só conseguem fazer-nos rir.”

"Se não fosse a deliberada reserva em que me escondo, não sei que mais constante raiva por aí se expandiria."