Últimos poemas (O mar e os sinos) - Pablo Neruda

"Hoje quantas horas vão caindo
no poço, na rede, no tempo,
são lentas mas não tiveram descanso,
seguem caindo, unindo-se
primeiro como peixes,
depois como pedradas ou garrafas.
Lá embaixo entendem-se
as horas com os dias,
com os meses,
com lembranças confusas,
noites desabitadas,
roupas, mulheres, trens e províncias,
o tempo se acumula
e cada hora
se dissolve em silêncio,
se esfarela e cai
ao ácido de todos os vestígios,
à água negra
do avesso da noite."

"Volta-se a mim como uma casa velha
com pregos e ranhuras, e assim
que alguém cansado de si mesmo,
como de um traje cheio de buracos,
tenta andar despido porque chove,
quer o homem molhar-se na água pura,
no vento elementar, e não consegue
senão voltar ao poço de si mesmo,
À minúscula preocupação de se existiu,
de se soube expressar-se
ou pagar ou dever ou descobrir,
como se fosse tão importante
que a terra com seu nome vegetal
tenha que aceitar-me ou não aceitar-me
no seu teatro de paredes negras."

"Se cada dia cai
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar a luz caída
com paciência."

"Perdão se pelos meus olhos não chegou
mais claridade que a espuma marinha,
perdão porque meu espaço
se estende sem amparo
e não termina:
monótono é meu canto,
minha palavra é um pássaro sombrio,
fauna de pedra e mar, o desconsolo
de um planeta invernal, incorruptível.
Perdão por esta sucessão de água,
da rocha, da espuma, o delírio da maré
assim é minha solidão
saltos bruscos de sal contra os muros
de meu ser secreto, de tal maneira
que eu sou uma parte do inverno,
da mesma extensão que se repete
de sino em sino em tantas ondas
e de um silêncio como cabeleira,
silêncio de alga, canto submergido."

"Foi sangrenta toda a terra do homem.
Tempo, edificações, rotas, chuva,
apagam as constelações do crime,
o certo é que um planeta tão pequeno
foi mil vezes coberto pelo sangue,
guerra ou vingança, armadilha ou batalha,
caíram homens, foram devorados,
depois o esquecimento foi limpando
cada metro quadrado: alguma vez
um vago monumento mentiroso,
às vezes uma cláusula de bronze,
depois conversações, nascimentos,
municipalidades, e o esquecimento.
Que artes temos para o extermínio
e que ciência para extirpar lembranças!
Está florido o que foi sangrento.
Preparar-se, rapazes,
para outra vez matar, morrer de novo,
e cobrir com flores o sangue."