Tudo é rio - Carla Madeira

"Beleza de choro, pensou com ela, que bom que escorreu, quem segura essas águas morre afogado, arrebentado por dentro."

"O que mais existe no mundo são pessoas que nunca vão se conhecer. Nasceram em um lugar distante, e o acaso não fará com que se cruzem. Um desperdício. Muitos desses encontros destinados a não acontecer poderiam ter sido arrebatadores. Por afinidade, por atração que não se explica, por força das circunstâncias, por químicas ocultas, quem pode saber? Quanto amor se perde nessa falta de sincronia. Não é preciso ir longe, alguém pode passar pela esquerda enquanto estamos olhando distraídos para a direita. Por um triz o paralelo nos obriga ao desencontro eterno. É preciso uma coincidência qualquer para que o amor se instale. Existe um certo milagre nos encontros. Não é tolo dizer que o amor é sagrado."

"Do lado dela gostou de ser ele."

"Afastou Aurora dos preconceitos que uma cidade que vive entra a igreja e a zona costuma ter. De um lado, um Deus alcoviteiro, capataz, com um caderno de notas na mão registrando cada deslize, especialmente o das mulheres; do outro, um Deus permissivo, vista grossa e cúmplice dos homens."

"Aprendeu que a verdade não tem dono, que é duro demais existir e que ninguém precisa ajudar ninguém a sofrer. O sofrimento vem sozinho, tem pernas, mais cedo ou mais tarde ele aparece; o que a gente tem de buscar é a alegria, essa se esconde delicada na correria dos dias, não se oferece de pronto, quer ser encontrada, surpreendida, amada."

"A melhor maneira de espantar um fantasma é acender a luz, olhar no olho, enfrentar."

"A morte é vida intensa demais para quem fica."

"Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida. Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder, e então a vontade do que está fora da gente joga sua sombra densa e pegajosa. Ficamos prisioneiros do que não queremos muito antes da morte."