O fim da eternidade - Isaac Asimov

"Ao eliminar os desastres da Realidade, a Eternidade exclui também os triunfos. É enfrentando as grandes dificuldades que a humanidade consegue alcançar com mais êxito os grandes objetivos. É do perigo e da insegurança que surge a força que impulsiona a humanidade para novas e grandiosas conquistas. Você consegue entender isso? Consegue entender que, ao afastar as armadilhas e vicissitudes que perseguem o homem, a Eternidade não deixa que ele encontre suas próprias soluções, boas e amargas, soluções reais que chegam quando a dificuldade é enfrentada, não evitada?"

Um Estranho Numa Terra Estranha - Robert Heinlein

“Não esperava uma conduta razoável dos seres humanos. A maioria das pessoas era candidata à interdição e à internação. Ele só queria que elas o deixassem em paz!”

“Se janto com taberneiros e pecadores, isso é problema meu. Não divido meu pão com fariseus.”

“Eu nunca entendi como Deus poderia esperar que suas criaturas escolhessem a única religião verdadeira pela fé, me parece um jeito desleixado de se administrar um universo.”

“O universo era um lugar ridículo, na melhor das hipóteses... mas a explicação menos plausível para ele era a explicação vazia do acaso aleatório, o conceito de que coisas abstratas ‘por acaso’ se tornaram átomos que ‘por acaso’ se juntaram de maneiras que ‘por acaso’ podiam ser definidas por leis consistentes; e algumas dessas configurações ‘por acaso’ passaram a possuir autoconsciência (...) Não, ele não conseguia engolir a teoria do ‘por acaso’, por mais popular que ela fosse dentre os homens que se chamavam de cientistas. O acaso aleatório não era uma explicação suficiente para o universo; o acaso aleatório não era suficiente para explicar o acaso aleatório; o jarro não poderia segurar a si mesmo.”

“Se Deus existisse (assunto do qual Jubal mantinha-se neutro) e se ele queria ser adorado (coisa que Jubal considerava improvável, mas apesar de tudo possível, considerando sua própria ignorância no assunto), então parecia mais improvável ainda que um Deus capaz de moldar galáxias pudesse se satisfazer com a algazarra maluca que os fosteritas chamavam de ‘adoração’.”

“Jubal não insistiu e passou à multiplicidade das religiões humanas. Explicou que os humanos têm centenas de maneiras de aprender os ‘grandes ensinamentos’, cada uma com resposta própria e cada uma afirmando ser a verdade.”

“Cada religião afirma ser a verdade, afirma falar certo. No entanto, suas respostas são tão diferentes como duas mãos e sete mãos. Os fosteritas dizem uma coisa, os budistas outra, os mulçumanos ainda outra... inúmeras respostas, todas diferentes.”

“Havia um campo no qual o homem era imbatível. Mostrava ilimitada habilidade em inventar métodos maiores e mais eficientes de matar, escravizar, atormentar e tornar-se de mil maneiras intolerável a si mesmo. O homem era a mais sinistra piada do homem.”

“Jubal não deu muitas risadas naquela semana; o mundo estava presente demais em sua vida.”

“– Parabéns! O desejo de não se meter na vida alheia é oitenta por cento da sabedoria humana!”

“A religião é um conforto para muitos e é possível que a religião, em algum lugar, seja a verdade suprema. Mas ser religioso é muitas vezes uma forma de orgulho. A fé na qual fui educado garantia-me que eu era melhor que os outros: eu estava salvo e os outros estavam ‘condenados’. Nós estávamos em estado de graça e os outros eram idólatras. Por idólatras entendiam pessoas como o nosso irmão Mahmoud. Homens místicos e ignorantes, que raramente tomavam banho e que plantavam milho de acordo com a fase da lua, achavam que tinham as respostas absolutas do universo. Isso os autorizava a olhar os estranhos com arrogância. Nossos hinos eram carregados de empáfia. Congratulávamo-nos com a intimidade que tínhamos com o Todo-Poderoso e pela boa opinião que ele tinha de nós. O resto que esperasse pelo juízo final.”

“Eu teria sido um ótimo pastor se não tivesse cometido a tolice fatal de ler. Com mais uma pitada de auto confiança e uma dose liberal de ignorância, eu teria sido um evangelista famoso.”

“Um vigarista sabe que está mentindo. Isso limita o seu alcance. Mas um xamã bem-sucedido acredita no que está dizendo e a crença é contagiosa, não há limites à sua ação.”

“– Ah, puxa, achei que ele estivesse finalmente seguro.
– Não existe segurança deste lado do túmulo.”

“– Jubal, como é que se permite uma coisa dessas?
– Que coisa?
– Tudo. Isso não é uma igreja... é uma casa de loucos.
– Não, Jill. É uma igreja... é o ecletismo lógico da nossa época.
– Hem?
– A Nova Revelação é um troço antigo. Foster e Digby jamais tiveram uma idéia original. Reuniram uma porção de truques velhos, deram uma mão de tinta e abriram o negócio. Um negócio de sucesso. O que me preocupa é que eu talvez ainda o veja obrigatório a todos.
– Oh, não!
– Oh, sim. Hitler começou com menos e o que ele negociava era ódio. A felicidade é uma mercadoria bem mais rentável. Eu sei, estou no mesmo ramo, como Dibgy me lembrou – Jubal fez uma careta. – Deveria ter-lhe dado um soco. Em vez disso ele me fez sentir prazer. É por isso que tenho medo dele: é inteligente. Sabe o que as pessoas querem. Felicidade. O mundo passou por um século de culpa e medo e agora Digby diz-lhes que não têm nada a temer, nem nesta vida nem depois, e que Deus quer que todos sejam felizes. Ele repete dia e noite: não tenham medo, sejam felizes.”

“Se você pinta um macaco de vermelho e o joga numa gaiola de macacos marrons, estes o estraçalharão.”

“O homem foi construído de forma a não poder imaginar a própria morte. Disso resulta uma infinita invenção de religiões. Embora aquela convicção não prove de maneira alguma que a imortalidade seja um fato, as perguntas por ela geradas são extremamente importantes. A natureza da vida, como o ego está enraizado no corpo, o problema do próprio ego e porque cada ego parece ser o centro do universo, a finalidade da vida, a finalidade do universo, são perguntas essenciais, Ben. Nunca se tornarão vulgares. A ciência ainda nãos as resolveu, e quem sou eu para zombar das religiões por tentar, por menos que me convençam? (...) A única opinião religiosa da qual me sinto seguro é a seguinte: a consciência não é só o entrechocar de um punhado de aminoácidos!”

“O martírio e a perseguição são a melhor propaganda para as igrejas.”

"Você não groka um deserto contando seus grãos de areia."

"Eu descobri por que a gente ri. Rimos porque dói... porque é a única coisa que faz a dor passar."

“– A morte não é engraçada.
– Então por que existem tantas piadas sobre a morte? Jill, para nós, humanos, a morte é tão triste que precisamos rir dela."

"O design abstrato é bacana, para papel de parede ou linóleo. Só que a arte é o processo de evocar pena e terror. O que os artistas modernos fazem é masturbação pseudointelectual."

"Ciúme é uma doença, amor é uma condição saudável. A mente imatura com frequência confunde uma coisa com a outra, ou presume que, quanto maior o amor, maior o ciúme. De fato, os dois são quase incompatíveis; uma emoção quase não deixa espaço à outra. As duas ao mesmo tempo podem gerar um turbilhão quase insuportável (...) Quando seu ciúme latiu, você não conseguiu olhar nos olhos dele, e então fugiu."

"Amor é a condição na qual a felicidade de outra pessoa é essencial para a sua."

"A bondade sozinha nunca é suficiente. Uma sabedoria dura e fria é necessária para que a bondade realize o bem. Bondade sem sabedoria sempre realiza o mal."

"A essência da disciplina é, primeiro, a autoconsciência, e então, autocontrole."

"A verdade é simples, mas o caminho do homem é difícil. Primeiro você precisa aprender a controlar o eu. O resto vem em seguida. Abençoado é aquele que conhece e comanda a si mesmo."

Capitães da areia - Jorge Amado

"E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito que, de mãos levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimento para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro."

"E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida."

"O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado."

"Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver."

Antes do baile verde - Lygia Fagundes Telles

"Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem..."

"Agora era tarde para dizer que não ia, agora era tarde. Deixara que as coisas se adiantassem muito, se adiantassem demais. E então? Então teria que trocar a paz do pijama pelo colarinho apertado, o calor das cobertas pela noite gelada (...) Devia haver no inferno o círculo social, aparentemente o mais suportável de todos, mas só na aparência. Homens e mulheres com roupa de festa, andando de um lado para o outro, falando, andando, falando, exaustos e sem poder descansar numa cadeira, bêbados de sono e sem poder dormir, os olhos abertos, a boca aberta, sorrindo, sorrindo, sorrindo... O círculo dos superficiais, dos tolos engravatados, embotinados, condenados a ouvir e a dizer besteiras por toda a eternidade." 

O meu pé de laranja lima - José Mauro de Vasconcelos

"Vamos dormir. O sono faz a gente esquecer tudo."

"A Fábrica era um dragão que todo dia comia gente e de noite vomitava o pessoal muito cansado."

"Esse pessoal vai contando as coisas e pensa que criança acredita em tudo." 

"Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu."

Cupim - Layla Martínez

"As coisas que uma pessoa tem dentro não são arrancadas com facilidade."

"Mas também como é que vai existir um Deus que mande essa gente pro inferno se o inferno é o que eles viviam naquelas escavações, descadeirados e sem nada pra botar na boca? Por isso era melhor deixá-los aqui e não levar nem pra um lugar nem pra outro, porque inferno eles já tinham tido bastante mas pro céu é que não iam porque o céu está cheio de bispo e de gente fina que pode pagar missas e enterros, e o que iriam fazer lá esses miseráveis?"

"Talvez tenha se apaixonado e acreditado que ele ia mudar quando se casasse, antigamente nós mulheres éramos idiotas a esse ponto." 

"O nojo é algo que nós pobres não podemos nos permitir, como a compaixão."

"Mas meu marido era medroso demais ou honrado demais, as duas piores coisas que um pobre pode ser."

"Me diziam do que eles falavam que fariam com ela, alguns com desejo e outros com aquilo que muitos homens têm pelas mulheres, eles pensam que é desejo mas é puro ódio."

"Ninguém quer que isso aconteça todo mundo acha ruim mas afinal um pouco menos ruim porque a imprensa os esquece depressa e eles logo se transformam em um número dentro de uma estatística e todo mundo sabe que isso já não dá pena em ninguém que ninguém sente pena de um número que quem dá pena são os meninos louros e brancos de quem sabemos o brinquedo favorito a cor favorita o nome do seu cachorrinho."

"Aos homens basta um gesto para todo mundo pensar que eles são bons pais."

" O dinheiro é sempre melhor o dinheiro dá a todas as coisas uma camadinha de óleo que faz com que nada fique rangendo com que tudo se encaixe em seus lugares cliquecliqueclique todas as peças funcionando como devem funcionar sem que nada se desbarate nem se rompa nem se encaroce nem tropece. Os pobres passam a vida dando martelada nas peças mas nem assim se encaixam."

"Eu entendo a raiva eu entendo que um pai queira arrastar você pelos cabelos se você perde o filho dele mas também sei que ele não teria essa raiva se o menino tivesse se perdido quando estava com amigos ou um familiar que essa raiva era uma raiva de patrão para quem a empregada se saiu mal."

"Mas com a velha eu falava, pedi que ela não fosse me ver porque precisaria pegar três ônibus e eu temia que lhe desse uma fraqueza ou uma tontura porque ela está bem para a idade mas pegar três ônibus baixa a pressão e tira a vontade de viver de qualquer um."

"Hoje em dia chamam isso de depressão mas aqui sempre foi morrer de desgosto."

O vampiro Lestat - Anne Rice

"O que quer que eu tenha prendido ou sentido quando lutava contra aqueles lobos permaneceu em minha mente mesmo enquanto eu caminhava. Cada vez que eu tropeçava e caía, algo em mim se endurecia, tornava-se pior." 

"– Toque de novo – eu disse. – A música é inocente."

"Eu não fazia mais parte do mundo que se encolhia de medo daquelas coisas. E, com um sorriso, percebi que eu era agora parte daquela família sombria que fazia os outros se encolherem de medo."

"Depois sair da cidade, ir para o campo. Ir para onde não haja nenhum homem nem mulher por perto. Ir para onde haja apenas o vento, as árvores escuras e as estrelas no céu. Abençoado silêncio." 

"Teria sido esse o perigo o tempo todo, o gatilho do meu medo? Mesmo enquanto admitia isso, eu estava me rendendo e pareceu que todas as grandes lições da minha vida foram aprendidas através da renúncia ao medo. Mais uma vez, o medo estava rompendo sua concha em torno de mim para que alguma outra coisa pudesse saltar para a vida."

"Não tem importância. Se lhe agrada, fique com ela. Eu não perco aquilo que dou."

"– Quando o mundo dos homens sucumbir em ruínas, a beleza tomará conta de tudo. As árvores crescerão de novo onde havia ruas; as flores irão cobrir de novo os campo que agora não passam de um pantanal de choupanas. Este será o propósito do mestre satânico, ver a grama selvagem e a densa floresta cobrirem todos os vestígios das grandes cidades do passado até nada mais restar. 
– E por que chamar tudo isso de satânico? – perguntei. – Por que não chamar de caos? Pois é tudo que seria.
– Porque – ela disse – é assim que os homens chamariam. Eles inventaram Satã, não foi? Satânico é apenas o nome que eles dão para o comportamento daqueles que tentam perturbar a maneira sistemática com a qual desejam viver."

"Eu me apaixonava pelo ser. Imaginava amizade, conversas, uma intimidade que jamais poderíamos ter. Em algum momento mágico e imaginário, eu diria: 'Mas você sabe o que sou', e aquele ser humano com suprema compreensão espiritual diria: 'Sim, eu sei. E compreendo.'"

"– Mas, depois de ter-lhe transmitido tudo que tenho , você estará exatamente onde estava antes: um ser imortal que precisa encontrar suas próprias razões para existir."

"Muitos poucos seres procuram realmente o conhecimento neste mundo. Mortais ou imortais, poucos perguntam de fato. Pelo contrário, eles tentam arrancar à força do desconhecido as respostas que já formaram em suas mentes... justificativas, confirmações, fórmulas de consolo sem as quais não podem continuar. Perguntar de fato é abrir a porta para um furacão. A resposta pode aniquilar a pergunta e quem a fez. Mas você tem andado perguntando de fato desde que deixou Paris há dez anos."

"– Você tem poucas ideias preconcebidas – ele disse. – Na verdade, o que me surpreendeu em você foi sua extraordinária simplicidade. Você quer um objetivo. Quer amor. 
– É verdade – eu disse com um leve encolher de ombros. – Bastante primário, não?
Ele deu outra risada suave: 
– Não. Não é mesmo. É como se mil e oitocentos anos de civilização ocidental tivessem produzido um inocente. 
– Um inocente? Você não pode estar falando de mim. 
– Fala-se tanto neste século sobre a nobreza do selvagem – ele explicou. – Sobre a força corruptora da civilização, do modo como temos de encontrar nosso caminho de volta à inocência que foi perdida. Bem, tudo isso é absurdo. Os povos primitivos de verdade são capazes de ser monstruosos em suas suposições e expectativas. Eles não conseguem fazer ideia da inocência. Assim como as crianças. Mas a civilização criou enfim homens que se comportam de modo inocente. Pela primeira vez, eles olham em volta de si mesmos e dizem: 'Que diabos é tudo isto?"'

O oráculo da noite - Sidarta Ribeiro

"Memórias são cicatrizes."

"A rotina do trabalho diário e a falta de tempo para dormir e sonhar, que acometem a maioria dos trabalhadores, são cruciais para o mal-estar da civilização contemporânea. É gritante o contraste entre a relevância motivacional do sonho e sua banalização no mundo industrial globalizado. No século XXI, a busca pelo sono perdido envolve rastreadores de sono, colchões high-tech, máquinas de estimulação sonora, pijamas com biossensores, robôs para ajudar a dormir e uma cornucópia de remédios. A indústria da saúde do sono, um setor que cresce aceleradamente, tem valor estimado em 30 bilhões e 40 bilhões de dólares. Mesmo assim a insônia impera. Se o tempo é sempre escasso, se despertamos diariamente com o toque insistente do despertador, ainda sonolentos e já atrasados para cumprir compromissos que se renovam ao infinito, se tão poucos se lembram que sonham pela simples falta de oportunidade de contemplar a vida interior, quando a insônia grassa e o bocejo se impõe, chega-se a duvidar da sobrevivência do sonho."

"Um sonho não interpretado é como uma carta nunca lida. Uma carta composta das imagens do passado e orientada pelos desejos do presente, cuja leitura atenta pode até mesmo mudar o futuro."

"Por que não percebemos que existem sonhos ao fundo quando estamos despertos? A explicação é a torrente de estimulações sensoriais provenientes dos cinco sentidos. Em jargão científico, os padrões reverberantes de atividade neural associados com a experiência pregressa são em grande parte – mas não completamente – mascarados durante a vigília pelos estímulos sensoriais recebidos. Parafraseando Freud, os sonhos são como as estrelas: estão sempre lá, mas só podemos vê-los durante a noite."

"Por que existe a realidade? Estamos vivendo num sonho, numa simulação? Daquilo que ocorreu antes do Big Bang, o papa sabe tanto quanto o melhor astrofísico: nada. Alguns insistem em dizer que essa pergunta nem faz sentido, pois antes do Big Bang não existiria o tempo. Como é que do nada veio tudo? Nascemos, vivemos e morremos em absoluta perplexidade metafísica, pois simplesmente não temos respostas."

19 de agosto de 2024

17 anos de fragmentos. 

O homem que calculava - Malba Tahan

"A paixão está para nós como a cor do vidro para os olhos. Se alguém nos agrada, tudo lhe louvamos e desculpamos; se, ao contrário, nos aborrece, tudo lhe condenamos, ou interpretamos de modo desfavorável." 

Contato - Carl Sagan

“Durante toda a existência da humanidade na Terra, o céu estrelado havia sido uma companhia e uma inspiração. As estrelas eram reconfortantes. Pareciam demonstrar que o firmamento fora criado para a alegria e a instrução dos seres humanos. Essa patética presunção tornou-se a sabedoria convencional em todo o planeta. Nenhuma cultura estava livre dela. Algumas pessoas encontravam no céu uma saída para a sensibilidade religiosa. Muitas se sentiam esmagadas e apequenadas pela glória e pela escala do universo. Outras eram estimuladas aos mais absurdos desvarios da imaginação.”

“Ellie nunca havia lido a Bíblia a sério antes e se inclinara a aceitar a opinião do pai, talvez carregada de certa implicância, de que se tratava de histórias bárbaras misturadas com contos de fadas.”

"Por que não havíamos recebido sinal algum? Seria possível que Dave tivesse razão? Não existiam civilizações extraterrestres em parte alguma? Todos aqueles bilhões de mundos seriam ermos, estéreis? Só existiriam seres inteligentes neste canto obscuro de um universo incompreensivelmente imenso? Por mais que tentasse, Ellie não conseguiu levar a sério essa possibilidade. Ela coincidia à perfeição com os medos e pretensões humanos, com doutrinas não comprovadas sobre a vida além-túmulo, com pseudociências como a astrologia. Era a encarnação moderna do solipcismo geocêntrico, a presunção que dominara nossos antepassados, a ideia de que éramos nós o centro do universo."

"Ellie tinha de lutar contra a tendência a formar uma personalidade demasiado agressiva ou tornar-se uma completa misantropa. Em dado momento, percebeu a situação estranha. Misantropo é a pessoa que detesta todas as demais, e não apenas os homens. E decerto havia uma palavra para designar uma pessoa que não gosta de mulheres: misógino. No entanto, os lexicógrafos, todos homens, haviam deixado de criar uma palavra que designasse a aversão aos homens. Quase todos eles eram homens, pensou ela, e tinham sido incapazes de imaginar que houvesse necessidade dessa palavra."

“A Mensagem, acreditava Ellie, era uma espécie de espelho, e nela cada pessoa via suas crenças serem refutadas ou confirmadas. Era considerada uma confirmação geral de doutrinas apocalípticas e escatológicas mutuamente excludentes.”

“Grupos diversos tinham a mensagem na conta de comprovação da existência de muitos deuses, de um único deus ou de nenhum.”

“Fanatismo, medo, esperança, debates passionais, preces serenas, nervosa reavaliação, desinteresse exemplar, estreita hipocrisia e ânsia por ideias novas e sensacionais haviam se tornado epidemias, varrendo febrilmente a superfície do minúsculo planeta Terra. Dessa intensa fermentação, Ellie julgava ver surgir, vagarosamente, a idéia de que o mundo não passava de um fio num vasto tapete cósmico.”

"No entanto, não conseguia penetrar-lhes a mente; não tinha meios de imaginar como seria o pensamento de uma criatura muito mais inteligente do que um ser humano. Claro. Não havia motivo para surpresa. Que ela esperava? Era como tentar visualizar uma nova cor primária ou um mundo onde se pudessem identificar várias centenas de conhecidos só pelo cheiro... Podia-se falar sobre isso, mas não vivenciar a situação. Por definição, só pode ser extremamente difícil compreender o comportamento de um ser muito mais inteligente."

“Ellie olhou. Reprimindo um certo estremecimento de repugnância, tentou ver a lagarta através dos olhos de Der Heer. ‘Veja o que ela faz’, continuou ele. ‘Se fosse grande como você ou eu, mataria todo mundo de medo. Seria um monstro de verdade, certo? Mas ela é pequena. Come folhas, trata da sua vida e acrescenta um pouco de beleza ao mundo.”

"Os teólogos parecem ter reconhecido um aspecto especial, não racional... eu não diria irracional... da sensação do sagrado ou do santo. Chamam isso de 'numinoso'. O termo foi usado pela primeira vez... vamos ver... uma pessoa chamada Rudolf Otto, num livro publicado em 1923, A ideia do sagrado. Ele acreditava que os seres humanos estavam predispostos a detectar e venerar o numinoso. Chamou isso de misterium tremendum. Até o meu latim é suficiente para entender isso. Na presença do misterium tremendum, as pessoas se sentem absolutamente insignificantes, mas, se entendi bem, não alienadas pessoalmente. Rudolf Otto considerava o numinoso como uma coisa de 'completa alteridade' e a reação humana a ele como sendo de 'absoluto pasmo'. Se é a isso que as pessoas religiosas se referem quando usam palavras como sagrado ou santo, estou com elas. Já senti alguma coisa parecida só ao operar o radiotelescópio, à espera de um sinal, quanto mais ao recebê-lo de verdade. Acho que tudo na ciência provoca essa sensação de pasmo."  

“'Sempre entendi que um agnóstico é um ateu sem a coragem de expressar suas convicções’
‘Da mesma forma o senhor poderia dizer que um agnóstico é uma pessoa profundamente religiosa que possui um conhecimento ao menos rudimentar da falibilidade humana. Quando digo que sou agnóstica, quero apenas dizer que não disponho de provas. Não existem provas contundentes da existência de Deus... pelo menos da sua espécie de deus... como também não existem provas convincentes de sua inexistência. Como mais da metade da população da Terra não é formada de judeus, cristãos ou mulçumanos, eu diria que não há argumentos conclusivos para a existência do deus em que o senhor acredita. Se não fosse assim, todos os habitantes da Terra teriam sido convertidos.’”

“'Michael’, disse Ellie, ‘o mundo é, ao mesmo tempo, melhor e pior do que você imagina.’
‘É provável que você conheça melhor do que eu o melhor’, respondeu ele, ‘mas não pode querer me ensinar o pior.’”

“Entenda, as pessoas religiosas... a maioria delas... pensam realmente esse planeta seja uma experiência. É a isso que se resumem suas crenças. Sempre há um ou outro deus se metendo nas coisas, andando com mulheres de mercadores, dando tábuas em montanhas, ordenando aos pais que mutilem seus filhos, ensinando às pessoas as palavras que podem dizer e as que não podem, fazendo as pessoas se sentirem culpadas por gozarem a vida, e assim por diante.”

"Crescia a sensação de humanidade, bilhões de pequenos seres espalhados pelo mundo, aos quais se apresentava, coletivamente, uma oportunidade sem precedentes ou mesmo um grave perigo em comum. A muitos parecia absurdo que nações litigantes continuassem suas rixas mortíferas quando confrontadas com uma civilização não humana de capacidade imensamente superior. Havia uma aragem de esperança no ar."

"'Essa é uma visão nobre e altruísta do mundo, com certeza, e eu seria a última pessoa a negar que existe bondade no coração humano. Mas quanta crueldade não foi cometida quando não existia o amor de Deus?
'E quanta crueldade cometida quando esse amor existia? Savonarola e Torquemada amavam a Deus, ou pelo menos era o que diziam. A sua religião parte do princípio de que as pessoas são crianças e precisam de um bicho-papão para se comportarem bem. O senhor quer que as pessoas acreditem em Deus para obedecerem à lei. Esse é o único meio que lhe ocorre: uma rígida força policial secular e a ameaça de um castigo por um Deus onividente, que puna tudo quanto a polícia não viu.'"

"'Somos todos humanos'. Essa era uma frase que se ouvia com frequência naqueles dias. Era extraordinária a raridade com que, em décadas anteriores, se expressavam sentimentos dessa natureza, sobretudo nos meios de comunicação. Compartilhamos o mesmo pequeno planeta, dizia-se, e – quase – a mesma civilização global. Era difícil imaginar os extraterrestres levando a sério um pedido de favorecimento por parte de representantes de uma ou outra facção ideológica. A existência da Mensagem – mesmo deixando de lado sua enigmática função – estava unindo o mundo."

“‘Perguntei a ele se, já que pode comunicar-se com uma pedra, é capaz de se comunicar com os mortos’, disse Xi.
‘E o que ele respondeu?’ 
‘Que com os mortos é fácil. Sua dificuldade é com os vivos.’”

"A Terra é uma aula prática para os deuses aprendizes. 'Se vocês errarem muito, fazem uma coisa como a Terra', dizem a eles. Mas, evidentemente, seria um desperdício destruir um mundo perfeitamente íntegro. Por isso eles nos dão uma olhadinha de vez em quando, só por segurança. É possível que de cada vez tragam os deuses que cometeram bobagens. Da última vez que olharam, estávamos brincando nas savanas, tentando correr mais do que os antílopes. 'Muito bem, está tudo certo', disseram. 'Esses sujeitos aí não vão nos dar nenhum problema. Daqui a 10 milhões de anos, a gente olha outra vez. Mas, por segurança, vamos acompanhá-los com radiofrequências.' Então, um belo dia, soa um alarme. Uma mensagem da Terra. 'O quê? Eles já tem televisão? Vamos ver o que estão fazendo.' Estádio olímpico. Bandeiras nacionais. Ave de rapina. Adolf Hitler. Milhares de pessoas aplaudindo. 'Chi!', dizem. Conhecem os sinais de perigo."

“A fronde de palmeira atendia a outra finalidade, compreendeu. Ela precisava de alguma coisa que lhe lembrasse a Terra. Tinha medo de ser tentada a não voltar.”

“'Quero saber o que pensa de nós’, disse ela lacônica. ‘O que realmente pensa.’
Ele não teve um instante de hesitação. ‘Muito bem. Acho que é extraordinário que tenham se saído tão bem. Praticamente não dispõem de uma teoria de organização social, possuem sistemas econômicos incrivelmente atrasados, não têm nenhuma idéia do mecanismo de previsão histórica e possuem pouquíssimo conhecimento de si próprios. Considerando a rapidez com que o mundo de vocês está mudando, é assombroso que ainda não tenham voado pelos ares. É por isso que não queremos abandoná-los. Vocês, humanos, têm certo talento para adaptabilidade... pelo menos a curto prazo.’
‘É esse o problema, não é?’
‘Um dos problemas.'"

"Não é impossível que a algum ser infinitamente superior todo o universo não passe de uma só planície, sendo a distância entre planeta e planeta como os poros de um grão de areia, e os espaços entre sistema e sistema, semelhantes aos intervalos entre um grão e o adjacente. Samuel Taylor Coleridge, Omniania."

"Na estação, ela havia aprendido uma espécie de humildade, um lembrete a respeito de quão pouco os habitantes da Terra realmente sabiam. Era possível que houvesse, pensou, tantas categorias de seres mais avançados do que os seres humanos quanto as que existem entre nós e as formigas, ou talvez mesmo entre nós e os vírus. No entanto, isso não a deprimira. Em lugar de uma aterradora resignação, provocara nela uma crescente sensação de grandeza. Aumentara tanto a escala das coisas a que aspirar!" 

Kafka à beira-mar - Haruki Murakami

"Você pode ir para longe, muito longe, sem que isso signifique que conseguiu fugir daqui de maneira definitiva. Acho que não deve depositar muita esperança nessa questão da distância, entendeu?"

"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar os olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até atingir o outro lado."

"Não sei se me julgavam desagradável, ou se tinham medo de mim, mas a verdade é que eu gostava de ser solitário. Eu tinha tanta coisa para fazer... Nos intervalos, eu sempre ia à biblioteca e lia muitos livros com avidez."

"Nem sempre eu conseguia defender essa tranquila independência. Às vezes, a cerca, que eu pensava haver erguido bem alto em torno de mim, ruía por completo. Não foram muitas as vezes em que isso aconteceu, mas houve algumas. Sempre que eu me desse conta disso, a parede desaparecia e, de repente, eu me via completamente nu e exposto perante o mundo. Nessas ocasiões, eu me perturbava por completo."

"– Já não dizia um velho ditado que 'encontros fortuitos...'
– '... o destino estabelece' – completo.
– Isso, isso mesmo – dizia ela. – Que significa?
– Que todos os acontecimentos, mesmo os mais fortuitos, são cármicos, foram preparados em vidas anteriores. Que coincidências não existem."

"Sou livre, penso. Fecho os olhos e considero por instantes a ideia de liberdade. Não consigo entender direito o que significa ser livre. Entendo apenas que, neste momento, estou sozinho. Estou sozinho em terra estranha. Como um explorador que perdeu a bússola e mapa. Ser livre é isso? Não sei. Desisto de pensar."

"Dentro de cem anos, provavelmente todas as pessoas aqui presentes (assim como eu) terão desaparecido da face da Terra e se transformado em lixo ou em cinzas. Penso nisso e me sinto estranho. Tudo ao meu redor adquire as características de uma frágil ilusão. Como se à menor aragem tudo pudesse se espalhar e sair voando pelos ares. Abro minhas duas mãos e as contemplo fixamente. Afinal, por que me esforço tanto em fazer o que eu faço? Por que continuo a viver tão desesperadamente?" 

"Então, sob o resplandecente céu noturno, sou acometido por nova e violenta onda de pavor. O ar me falta e o coração se acelera. Eu vivera sob o intenso escrutínio destas incontáveis estrelas, mas nem me dera conta de que existiam. Jamais me passara pela cabeça considerá-las com seriedade. Aliás, não só elas. Pois quantas coisas além delas não haveria no mundo de cuja existência eu não tinha a menor ideia ou não me dera conta? Penso nisso e me sinto irremediavelmente pequeno e incapaz."

"Retiro o fone dos ouvidos e ouço o silêncio. O silêncio é realmente audível. Sei disso agora."

"A bateria do meu walkman descarregou, mas a música não me faz tanta falta como a princípio imaginei que faria. Encontro substitutos para ela em toda parte: no canto dos pássaros, no cricrilar de inúmeros insetos, no burburinho do regato, no farfalhar do vento nas árvores, nos passos ligeiros sobre o telhado, no gotejar da chuva... E também nos sons misteriosos que por vezes me chegam ao ouvido, inexplicáveis, inexprimíveis em palavras. Até agora, não me dera conta da infinidade de sons puros e maravilhosos que povoam a natureza. Eu vivera a minha vida inteira sem me dar conta desse tesouro maravilhoso. Para compensar o tempo perdido, sento-me na varanda, fecho os olhos e me anulo para melhor captar todos os sons existentes ao meu redor."

"– E por falar em contradições – diz Oshima como se a ideia de repente lhe ocorresse –, sabe o que eu penso de você desde o primeiro momento em que o vi? Que, por um lado, você busca alguma coisa intensamente e, por outro, faz de tudo para fugir dessa coisa."

"Os únicos seres com quem se comunicava plenamente eram os gatos. Nos dias de folga, ia para um parque próximo, sentava-se num banco até o fim do dia e conversava com eles. Curiosamente, nunca se via sem assunto nessas ocasiões."

"– Começo a achar que, para você, essa mochila simboliza a liberdade – comenta Oshima.
– Provavelmente – eu digo.
– Pode ser que carregar consigo o símbolo da liberdade lhe dê mais prazer do que ter nas mãos a liberdade propriamente dita.
– Algumas vezes... – eu digo."

"– Meu jovem, pode ser que a grande maioria das pessoas existentes no mundo não esteja em busca de liberdade. As pessoas apenas pensam que estão. Tudo é ilusório. Caso a liberdade lhes fosse realmente concedida, a maioria se veria num mato sem cachorro. Lembre-se sempre disso. Na verdade, as pessoas gostam de se sentir presas, entendeu? 
– Você também, Oshima?
– Sim, eu também gosto de me sentir preso. Isto é, até um certo ponto – emenda Oshima. – Jean-Jacques Rousseau declarou: a civilização teve início no momento em que a humanidade aprendeu a construir muros. Um rasgo de genialidade. Exatamente, a civilização é o produto da falta de liberdade intramuros."

"O que eu busco, isto é, a força que eu busco, não se relaciona com vitórias ou derrotas. Tampouco procuro paredes capazes de rechaçar forças externas. O que eu busco é a força que me permita enfrentar a quem vem de fora e resistir a ela. Um tipo de força que me permita suportar com serenidade a injustiça, a falta de sorte, a tristeza, o mal-entendido e a incompreensão."

"Nossa existência é apenas um teatro de sombras desse princípio. O vento sopra. Há vendavais de furioso poder destrutivo, há brisas reconfortantes. Mas todo vento um dia cessa e desaparece. O vento não é matéria sólida. É mero nome que se dá aos deslocamentos de ar. Você apura os ouvidos. E decifra o sentido dessa metáfora."

"– Senhora Hoshino – disse Nakata.
– Hum?
– Que coisa linda é o mar, não?
– Realmente. Olhar para ele acalma o espírito.
– E por que será que olhar para o mar acalma o espírito? 
– Talvez porque ele é grande e não tem nada sobre ele – disse o rapaz, apontando o mar alto. – Aposto que não teria um efeito tão calmante se houvesse uma loja de jogos eletrônicos naquele ponto e um enorme painel anunciando Casa de Penhores Yoshikawa. É simplesmente fantástico não ter nada até onde a vista alcança."

"Existe um mundo paralelo, contíguo a este em que vivemos. Você é capaz de entrar nele até um certo ponto. É também capaz de voltar de lá são e salvo. Contanto que esteja atento. Mas uma vez transposto certo ponto, nunca mais será capaz de voltar. Não vai mais achar o caminho. É um labirinto."

Ciranda de pedra - Lygia Fagundes Telles

"Crispou as mãos como se pudesse agarrar as rédeas do pensamento que corcoveava por aquele caminho detestável, ah, mas era preciso puxá-lo para outro lado, com força, com força!"

"Por que tranquilidade ou indiferença, no fundo, não eram a mesma coisa?"

"– Você acredita em Deus? – perguntou ela após algum tempo.
– Antes, deduzi que Ele devia existir. Mas fui além, depois. O fato é que nesta minha vida assim de solidão, eu pensava ter escalado toda aquela escada de que fala Platão, você se lembra disso? No primeiro degrau, o simples amor pelas coisas terrenas, pelas belas coisas terrenas. Progredindo, chega-se às belas formas, das belas formas ao belo proceder, do belo proceder aos belos princípios, dos belos princípios ao princípio último, que é o da beleza absoluta. raciocinei, e a beleza absoluta só pode ser Deus.
Calou-se. Acendeu um cigarro.
– Como vê, tudo assim formal, calculado. Mas uma tarde, na chácara, eu olhava uma teia de aranha e então aconteceu isso, senti em redor a presença Dele. No céu, o sol lançava raios vermelhos e retos, iguais aos que as crianças traçam nos seus desenhos, iguais aos ingênuos resplendores dos santinhos de papel. Vi então que Ele estava na tarde, no todo imenso e na parte ínfima, estava na luz do sol e na sombra rendada que a teia da aranha projetava no chão, estava nas folhas aos meus pés e estava naquele passarinho que passou como uma seta sobre minha cabeça. Quando respirei, era como se estivesse respirando Deus."

"Creio, sim, na sobrevivência da alma, mas isto porque sinto os meus mortos em redor. Eles continuam, embora nenhuma força consiga governá-los. Mortos e vivos, estão todos por aí, completamente soltos. E a confusão é geral."

"Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. A música – acrescentou, detendo-se ao ouvir os sons de um piano num exercício ingênuo. – Este céu que nem promete chuva – prosseguiu. – Aquela estrelinha que está nascendo ali... Está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os Reis Magos, nem os pastores, nem marinheiros perdidos. Não faz nada. Apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza. No inútil também está Deus."

"'Feliz Ano Novo! Pois sim!' – sussurrou Virgínia ao apertar a campainha do apartamento de Letícia. Difícil encontrar um voto mais ocioso, mais formal. Podia-se desejar uma tarde feliz, uma noite feliz, um dia inteiro feliz, no máximo. Mas um ano? Felizes, só mesmo os egoístas, os alienados como Otávia. Os contemplativos como Conrado. Ou então, os inconsciente como Rogério."

"Ouça, querida – disse-lhe Otávia certa vez –, não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora. Mas passa."

"Essa coisa de Natal, também... É preciso acabar com essa história que é de uma melancolia incrível, não se falará em Natal.
'Mas se pensará nele', disse Virgínia a si mesma. Ah! A obrigação de abraçar e ser abraçada, aquela necessidade de comunicação, de calor... Era cruel demais para quem estava na solidão."

O deserto dos tártaros - Dino Buzzati

"Pareceu-lhe achar-se entre homens de outra raça, numa terra estranha, num mundo duro e ingrato."

"Talvez tudo seja assim. Acreditamos que ao redor haja criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira; preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós."

"Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém."

"Datas que antigamente pareciam inverossímeis, de tão remotas, agora se aproximavam repentinamente do horizonte próximo, recordando os duros prazos da vida."

"E, subitamente, os antigos terrores caíram por terra, os pesadelos afrouxaram-se, a morte perdeu seu vulto enregelante, transformando-se em coisa simples e de acordo com a natureza."

A cura de Schopenhauer - Irvin D. Yalom

"Mas agora, pensando na jovem meditando, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram vítimas daquela excêntrica virada de evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milênios afora, construímos sem parar negações paliativas da finitude."

"Melhor aceitar a solução de Einstein e Spinoza: apenas inclinar a cabeça e bater no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver."

"Levo uma vida muito sóbria, não preciso de nada, exceto da liberdade de ter o que é realmente importante para mim: ler, pensar, meditar, ouvir música, jogar xadrez e caminhar com Rugby, meu cachorro."

"Viu muitos pacientes mudarem totalmente, mas continuarem sendo vistos do mesmo jeito pelo restante do grupo. Isso ocorre também nas famílias. Muitos pacientes passavam por maus bocados ao visitarem a casa dos pais: tinham que ficar atentos para não serem jogados no velho papel que a família lhes reservara e precisavam de muito esforço e energia para convencer pais e parentes de que tinham de fato mudado."

"As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até a menor nos atormenta."

"Nietzsche uma vez disse que, quando acordamos desanimados no meio da noite, os inimigos que derrotamos há muito tempo voltam para nos assombrar."

"– Julius, você me confunde, me impressiona seu jeito tão prosaico de falar na morte.
– Todos nós estamos morrendo, Bonnie. Só que eu sei meu prazo de validade melhor do que vocês."

"A popularidade não mostra o que é verdadeiro ou bom. Pelo contrário, nivela por baixo."

"Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma? Talvez as quatro grandes verdades fossem ligadas à cultura indiana. Talvez fossem verdades adequadas para 2.500 anos atrás, em um lugar oprimido pela pobreza, pela superpopulação, pela fome, pela doença, pela opressão das castas e pela falta de qualquer esperança em um futuro melhor. Mas seriam verdades para ela agora? Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou em uma vida melhor depois da morte visavam apenas aos pobres, aos sofridos, aos escravizados?"

"Quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros."

"– Estar satisfeito, precisar tão pouco dos outros. jamais querer a companhia de alguém... Isso parece bem solitário, Philip.
– Pelo contrário. No passado, quando eu queria a companhia dos outros, pedia o que não iam dar, ou melhor, não podiam dar. Aí, sim, vi o que era solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só. Eu busco a abençoada solidão."

"Desumano mesmo era quando eu deixava que minha autoestima flutuasse como uma cortiça de acordo com o que os outros achavam de mim."

"Acho que a vista do cume de uma montanha ajuda muito a ampliar os conceitos. (...) Tudo que é pequeno, some. Só fica o que é grande."

"Todo terapeuta experiente tinha um arsenal de 'técnicas para abrir mão' para usar na terapia. Mas a indústria simplista e esperta do perdão tinha crescido, promovido e comercializado esse aspecto da terapia e apresentado como se fosse algo totalmente novo. A enganação havia ganhado respeitabilidade por se misturar ao atual clima social e político mundial de perdão para afrontas como genocídio, escravidão e exploração. Até o papa tinha pedido perdão para os cruzados que saquearam Constantinopla no século XIII." 

"Lembrou-se dos grupos de pacientes com câncer em que ele tinha orientado havia alguns anos. Era frequente as pessoas falarem de uma fase de ouro, passado o pânico de constatar que iam morrer. Alguns disseram que o câncer os tinha deixado mais sensatos, mais realizados, enquanto outros mudaram suas prioridades na vida, ficaram mais fortes, aprenderam a recusar atividades de que não gostavam mais havia muito tempo e fazer coisas que de fato importavam, como amar a família e os amigos, observar a beleza das coisas em volta, sentir a mudança das estações. Mas muitos pacientes lamentavam que só tivesse aprendido a viver depois de seus corpos terem sido corroídos pelo câncer. As mudanças foram tão grandes (um paciente chegou a dizer que 'o câncer cura a neurose') que, por duas vezes, Julius lançou um desafio aos seus alunos na faculdade. Descreveu apenas as mudanças psicológicas de determinados pacientes e pediu que os alunos dissessem o tipo de tratamento que estavam recebendo. Todos ficaram surpresos ao saber que nenhuma terapia ou remédio tinha mudado tanto aqueles pacientes, apenas o fato de enfrentarem a morte."