A negação da morte - Ernest Becker

"Não há dúvida de que os primitivos celebram com frequência a morte – como Hocart e outros demonstraram – porque acreditam que a morte é a promoção suprema, a última elevação ritual para uma forma de vida superior, para o desfrute da eternidade de alguma forma. A maioria dos ocidentais modernos tem dificuldade em acreditar nisso, o que faz com que o medo da morte tenha um papel muito destacado em nossa configuração psicológica."

"A rivalidade entre irmãos é um problema crítico que reflete a condição humana básica: não é que as crianças sejam maldosas, egoístas ou dominadoras. Elas simplesmente expressam muito abertamente o trágico destino do homem: justificar-se desesperadamente como um objeto de valor primordial no universo, se destacar, ser um herói, dar a maior contribuição possível para a vida no mundo, mostrar que vale mais do que qualquer outra coisa ou pessoa."

"Como disse Aristóteles em algum lugar: sorte é quando o sujeito ao seu lado é atingido pela flecha. (...) É esse narcisismo que faz com que, nas guerras, homens continuem marchando até serem atingidos por tiros a queima-roupa. No fundo do coração, o indivíduo não acha que vai morrer, apenas sente pena daquele que está ao seu lado. A explicação de Freud para isso era de que o inconsciente não conhece a morte ou o tempo: nos seus recessos orgânicos fisioquímicos mais íntimos, o homem se sente imortal."

"O herói era o homem que podia entrar no mundo dos mortos, no mundo espiritual, e voltar vivo. (...) O herói divino de cada um desses cultos era alguém que tinha voltado dos mortos. E como sabemos, hoje, com base na pesquisa de mitos e rituais antigos, o próprio cristianismo era um concorrente dos cultos misteriosos e saiu vencedor – entre outras razões – porque também tinha em destaque um homem que curava, tinha poderes sobrenaturais e havia ressuscitado."

"Os homens primitivos que tinham mais medo eram os mais realistas em relação à sua situação na natureza, e transmitiram aos seus descendentes um realismo valoroso para a sobrevivência. O resultado foi o surgimento do homem tal como o conhecemos: um animal hiperansioso que inventa constantemente razões para a sua ansiedade."

"Um leão deve sentir-se mais certo do que uma gazela de que Deus está do seu lado."

"O que veremos é o que homem molda para si mesmo um mundo governável: ele se lança à ação sem usar de crítica, sem pensar. Aceita a programação ditada pela sua cultura, que lhe diz para onde ele deve olhar."

"Tudo o que o homem faz no seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e vencer o seu destino grotesco. O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de as situação que se constituem em formas de loucura – loucura admitida pelo consenso, loucura compartilhada, disfarçada e digna, mas ainda assim loucura."

"No mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o traseiro. Em geral, esse epigrama faz as pessoas rirem, porque parece resgatar o mundo do orgulho artificial e o esnobismo e trazer as coisas de volta aos valores igualitários. Mas se nos aprofundarmos nessa observação e dissermos que os homens se sentam não apenas sobre os seus traseiros mas sobre um monte quente e fumegante de seu próprio excremento, a piada já não terá mais graça."

"A grande dádiva da repressão é a de possibilitar ao homem viver decisivamente em um mundo esmagadoramente miraculoso e incompreensível, mundo tão cheio de beleza, majestade e terror que, se os animais o percebessem, ficariam paralisados e sem ação."

"A maior descoberta de Freud, aquela que se acha na raiz da psicodinâmica, é que a grande causa de muita doença psicológica é o medo do autoconhecimento – do conhecimento de nossas emoções, nossos impulsos, nossas recordações, capacidades, potencialidades, nosso destino."

"Há o tipo de homem que tem grande desprezo pela imediação, que tenta cultivar sua interioridade, tenta fundamentar seu sendo de valor pessoal em algo mais profundo e mais interior, criar uma distância entre si mesmo e o homem médio. Kierkegaard chama esse tipo de homem de introvertido. É um homem um tanto mais preocupado com o que significa ser uma pessoa, ter individualidade e singularidade. Gosta da solidão e se retira periodicamente para refletir, talvez para nutrir ideias sobre o seu eu secreto, sobre o que este eu poderia ser. Este, em resumo, é o único problema verdadeiro da vida, a única preocupação humana que vale a pena: qual é o seu verdadeiro talento, seu dom secreto, sua autêntica vocação? De que maneira a pessoa é realmente ímpar, e como pode expressar essa singularidade, dedicá-la a algo que está além de si mesma? Como é que a pessoa pode tomar o seu ser interior privado, o grande mistério que ela sente no seu íntimo, suas emoções, seus anseios, e usá-los para viver mais distintamente, para enriquecer tanto a si mesma quanto a humanidade com a qualidade característica de seu talento? Na adolescência, na maioria de nós lateja esse dilema, e o expressamos com palavras e pensamentos ou com sofrimentos e anseios sufocados. Mas, em geral, a vida nos suga atirando-nos a atividades padronizadas. O sistema social de heróis em que nascemos traça trilhas para o nosso heroísmo, trilhas com as quais nos conformamos, às quais nos moldamos para que possamos agradar aos outros, tornarmo-nos aquilo que os outros esperam que sejamos. E em vez de trabalhar o nosso segredo interior, vamos aos poucos cobrindo-o e esquecendo-o, enquanto nos tornamos homens puramente exteriores, jogando com sucesso o padronizado jogo dos heróis, no qual caímos por acidente, por conexões familiares, por um patriotismo reflexo, ou pela simples necessidade de comer e pela ânsia de procriar. Não estou dizendo que o introvertido de Kierkegaard mantém essa busca interior inteiramente viva e consciente, mas apenas que ela representa um pouco mais do que um problema vagamente consciente, do que representado no caso do homem acordado, tragado pelo ambiente. O introvertido de Kierkegaard sente-se um ser diferenciado no mundo, tem alguma coisa em si mesmo que o mundo não pode refletir, não pode, em sua imediação e superficialidade, apreciar; e por isso esse indivíduo se mantém um tanto afastado do mundo."

"Se não temos a onipotência de um deus, pelo menos podemos destruir como se fôssemos um."

"Uma vez admitido o fato de ser uma criatura que defeca, você convida o oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você. Mas isso é muito mais do que a angústia da criatura, é também a angústia do homem, a angústia que resulta do paradoxo humano de que o homem é sim um animal, porém cônscio de sua limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da verdade da nossa condição. O que significa ser um animal consciente de si mesmo? A ideia é absurda, se não for monstruosa. Significa saber que se é alimento para os vermes."

"Com os seus problemas característicos, o homem é o único animal que pode, muitas vezes de bom grado, abraçar o profundo sono da morte, mesmo sabendo que isso significa o esquecimento."

"O homem normal abocanha da vida aquilo que ele tem condições de mastigar e digerir, e nada mais. Em outras palavras, os homens não são feitos para serem deuses para assimilarem o mundo inteiro; são feitos, como outras criaturas, para assimilar o pedaço de terra que está diante de seus focinhos. Os deuses podem assimilar a totalidade da criação, porque só eles podem entendê-la, saber de que se trata e para que serve. Mas assim que o homem levanta o nariz do chão e começa a farejar problemas eternos, como a vida e a morte, o significado de uma rosa ou um grupo de estrelas – aí ele se complica. A maioria dos homens se poupa dessa complicação, mantendo a mente concentrada nos pequenos problemas de suas vidas, tal como a sociedade em que vivem traça esses problemas para eles. São os que Kierkegaard chamava de homens imediatos e de filisteus. Eles se tranquilizam com o trivial – e assim podem levar vidas normais."

"Não existe um limite entre normal e neurótico, já que todos nós mentimos e estamos comprometidos, de certas maneiras, com a mentira. A neurose é, então, algo de que todos nós partilhamos, ela é universal."

"Afinal, o que devemos pensar de uma criação na qual a atividade rotineira consiste em os organismos despedaçarem os outros com dentes de todos os tipos, mordendo, triturando carne, talos de plantas e ossos entre os molares, empurrando avidamente a pasta goela abaixo, incorporando sua essência à própria organização e depois evacuando o resíduo com mau cheiro e gases? Cada um tentando incorporar outros que lhes sirvam de alimento. Os mosquitos inchando-se de sangue, os gusanos, as abelhas assassinas atacando com fúria e demonismo, tubarões continuando a estraçalhar e engolir enquanto suas próprias entranhas estão sendo arrancadas. Isso para não falar na mutilação e no massacre diário em acidentes naturais de todos os tipos: um terremoto enterra vivos setenta mil corpos no Peru, forma-se uma pirâmide de mais de cinquenta mil carros velhos por ano só nos Estados Unidos, um maremoto leva mais de duzentas e cinquenta mil pessoas no Oceano Índico. A criação é um aterrorizante e grandioso espetáculo que se passa num planeta que vem sendo ensopado, durante centenas de milhões de anos, no sangue de todas as suas criaturas."