A alma imoral - Nilton Bonder

"O apego ameaça e violenta a integridade de um ser humano da mesma maneira que uma traição. Somos capazes de medir a última, mas poucas vezes nos damos conta da violência que impomos à nossa alma. É, porém, entre esses dois estados de desequilíbrio que residem nossas grandes dificuldades na vida. E o mais fantástico é que eles estão sempre juntos. Não existe experiência de traição que não venha acompanhada de apego."

"Observemos um casal que vive uma relação de casamento. O desequilíbrio maior surge quando um dos dois dá um passo à frente em direção à sua vida. Esse passo, que é muito transgressivo em relação à sua situação acomodada, deveria gerar um passo também do cônjuge. Se isso acontecesse, ambos estariam equilibrados e sua dinâmica seria natural. No entanto, o que mais acontece como reação a um passo à frente é que o outro dá um passo para trás. O desequilíbrio então se estabelece e uma situação não dinâmica atravanca o processo vital. A maioria dos casamentos termina pela recorrência desse ato reflexo. Quando um cônjuge esboça transformações na relação, o outro cobra justamente os compromissos assumidos, dando um passo para trás. (...) A reação de dar um passo para trás – expondo carências, coletando justificativas ou evocando direitos – é um apego que, em si, é a maior das traições ao sonho assumido em um pacto."

"Todo traído é, sem dúvida, alguém que peca pelo apego. Em realidade, uma pessoa só pode se sentir traída se está às voltas com dificuldades de excesso de apego."

"As surpresas do relativo, das misturas, dos erros, das espontaneidades ou dos pecados fortalecem a alma e lhe ofertam seu nutriente mais importante: a evolução."

"Muitas coisas são feitas ou deixam de ser feitas por sacrifícios ao nada. Quantas pessoas poderíamos ter 'tirado para dançar' na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante. Quantas vezes deveríamos ter dito não em vez de nos desgastarmos para dissimular virtudes que são oferendas idólatras: oferendas ao deus expectativa, ao deus cobrança, ao deus culpa e assim por diante."

"É a alma que fica inconformada com os sacrifícios vazios do corpo e é ela a responsável pelos atrevimentos, ousadias, riscos e transgressões."

"Quantos casamentos são uma traição profunda à promessa de busca de uma vida de enriquecimento afetivo mútuo? Viver esse tipo de casamento, decerto após terem se esgotado todas as medidas possíveis para curar a relação, é uma forma de traição à alma bem mais séria do que um possível adultério representa traição ao corpo. Por corpo entenda-se o passado e o compromisso do passado. A fidelidade hipócrita é um compromisso com o passado que obstrui o presente e o futuro."

"Aquele que experimenta o exílio e chega a uma terra alienígena nada tem em comum com as pessoas daquele lugar e ninguém com quem conversar. Mas, se um segundo estrangeiro chegar, mesmo que ele seja de um lugar totalmente distinto do primeiro, os dois possuem muito em comum e se identificam, criando vínculos de forte amizade. Se não fossem estrangeiros, eles jamais teriam conhecido tão forte amizade e ligação."

"Aqueles que se permitem as transgressões da alma com certeza são vistos e recebidos pelos outros como estrangeiros. Os que mudam de emprego radicalmente, os que refazem relações amorosas, os que abandonam vícios, os que perdem medos, os que se libertam e os que rompem experimentam a solidão que só pode ser quebrada por outro que conheça essas experiências. A natureza da experiência pode ser totalmente distinta, mas eles se tornarão parceiros enquanto 'forasteiros'."

"Satã é a própria dificuldade que temos de distinguir a luz da escuridão. Muitas vezes a luz não está nem naquilo que promove a preservação, nem no que promove a transformação. Por interesses naturais à cultura e à moral, no entanto, nossa sociedade resolveu transformar Satã num espantalho que realmente nos afasta da mudança. É por medo dele que se obteve um instrumento a mais para manter as pessoas ocupadas em seus próprios padrões sem se permitir ousar e descobrir novas possibilidades da própria vida. Sua linguagem e sua imagem passaram a servir como porta-vozes da imutabilidade da tradição, da família e da propriedade. Sua fala eloquente e repleta de exemplos da vida e da realidade são poderosamente paralisadoras. O mundo dos medos, das divisões, das defesas e do controle são produtos dessa fala das consciências humanas que demanda a convencionalidade."

"Por mais de um milênio, da Idade Média até o período moderno, a Igreja Romana sustentou o patrulhamento ideológico e teológico, impondo a lei através de seus braços executivos, entre eles a Inquisição. As bruxas ou os judaizantes queimados eram as prostitutas, os contestadores, os visionários. Eram não apenas o povo ou o grupo com quem Jesus se identificava, mas, simbolicamente, o próprio Jesus."

"O Jesus histórico não é o adorador do que é 'correto', da família, da propriedade e da tradição: sua origem perigosa transgrediu culturas e morais, e ainda hoje ele seria crucificado. Os primeiros a crucificá-lo seriam aqueles que não suportariam sua compaixão e complacência para com os homossexuais, os delinquentes, os marginais. Não seria absurdo dizer, portanto, que em certos círculos tradicionais de devoção cristã o personagem histórico ainda hoje seria aprisionado e crucificado."

"Ainda cometeremos muitas crucificações, mas a derradeira, a que realmente está em jogo, é a nossa."