O Jogo das Contas de Vidro - Hermann Hesse

“Admitamos que existe liberdade, mas que ela se limita à escolha da profissão. Depois disso acabou-se a liberdade. Desde os estudos feitos na universidade, o médico, o advogado, o técnico estão presos a um currículo escolar muito rígido, que termina com uma série de exames. Caso eles passem nos exames, recebem seu diploma e poderão exercer sua profissão com aparente liberdade. Serão porém escravos de poderes baixos, vão depender do sucesso, do dinheiro, do seu orgulho, da procura da fama, da simpatia ou antipatia que despertarão nos outros. Têm que se candidatar a eleições, ganhar dinheiro, tomar parte na luta brutal das castas, das famílias, dos partidos e dos jornais. Em compensação, têm a liberdade de obter sucesso e fortuna e ser odiados pelos que não os tiveram, ou vice-versa.”

“– Creio que nunca observei como ela é linda – disse o companheiro de José. – Pois é, isso talvez aconteça porque eu a vejo pela primeira vez como uma coisa que tenho de deixar e da qual preciso despedir-me.”

“Não vás rir de mim, mas esses meninos que partiram têm para mim, apesar de tudo, algo de imponente, assim como o anjo rebelde Lúcifer tem certa grandiosidade. Talvez tenham feito uma coisa errada, podemos admitir que cometeram um erro, mas, seja como for, fizeram alguma coisa, realizaram algo, ousaram dar um salto e é preciso coragem para isso. (...) Isso significa a possibilidade de abandonar qualquer coisa, levar as coisas a sério, ora... dar um salto! Eu não tenho desejo de dar um salto para voltar ao meu antigo lar e à minha antiga vida, eles não me atraem, eu quase os esqueci. Mas gostaria, quando chegar a hora e for necessário, desapegar-me também e saltar, não para voltar a um estado inferior, mas para a frente e para cima.”

“Bem te recordas como eu criticava a presunção e a jactância dos castálicos, dessa casta efeminada e convencida, com seu espírito de privilégio e soberbia da elite. Pois bem, a gente do mundo com seus maus modos, sua cultura reduzida, seu humor grosseiro e barulhento, sua limitação tola a fins práticos e egoístas não era menos orgulhosa.”

“Se os demais tinham sido indiferentes comigo, esse desapontamento contigo foi muito pior, esse esforço inútil e forçado por uma amizade que existira um dia foi-me muito mais doloroso.”

“– Muitas vezes – disse ele resignado – tudo se afigura não só como se tivéssemos duas maneiras diferentes de exprimir-nos e falar, cada uma delas só podendo ser traduzida na outra na forma de insinuações, porém, mais ainda, como se fôssemos dois seres absoluta e radicalmente distintos, que jamais poderão chegar a se entender mutuamente. Parece-me extremamente duvidoso apurar quem de nós dois seria propriamente o ser humano, autêntico e de pleno direito, tu ou eu, se é que um dos dois o é realmente.”

“A ventania que precede um temporal prestes a desabar, que nos leva apressadamente para casa e que tenta arrancar-nos das mãos a porta da frente, ou uma forte dor de dentes que parece concentrar em nossas maxilares todas as tensões, sofrimentos e conflitos do universo, são coisas cuja realidade ou importância nós poderemos depois discutir, se é que nos inclinamos a este tipo de ocupação, mas que na hora da experiência concreta não toleram a menor sombra de dúvida, pois estão arrebentando de realidade.”

“Também ficara sabendo por experiência própria que os doentes ou infelizes preferem as inovações mágicas e os exorcismos, tradicionais ou recém-inventados, a sábios conselhos; que o homem prefere ser atingido pela desgraça ou praticar penitência pública a transformar-se interiormente, ou mesmo a fazer um exame de consciência; que acredita mais facilmente em feitiços do que na razão, em exorcismos mais que na experiência: coisas essas que, conforme parece, nos milênios que decorreram desde então, não mudaram tanto como pretendem muitos tratados de História.”

“Nada mais desejava a não ser calma, a não ser um fim, nada mais desejava além de fazer cessar a rotação dessa roda, esse infindável desfilar de imagens, suprimindo-os. Desejava alcançar a paz interior, desejava desaparecer...”