Poesia Completa de Álvaro de Campos - Fernando Pessoa

“Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço a mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.”

“Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!”

“Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez e quando faz um vento frio...
Estou triste, muito triste, como se o dia fosse eu.

Num dia no meu futuro em que chova assim também
E eu, à janela, de repente me lembro do dia de hoje,
Pensarei eu ‘ah nesse tempo eu era mais feliz’
Ou pensarei ‘ah, que tempo triste foi aquele’!
Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?

O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...”

“E nem choro, de atento que estou ao terror da vida.”

“Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?”

“E que dor é esta, do antigo e do atual e do futuro,
Que dói na alma como uma sensação de exílio?”

“E os meus versos são como ideias que podem não ser compreendidas...”

“Eu nunca farei senão copiar um eco das coisas,
O reflexo das coisas reais no espelho baço de mim.”

“Ó coração por sarar! quem me salva de ti?”

“O braço não alcança mais do que a mão pode conter,
O olhar não atravessa os muros da sombra,
O coração não sabe desejar o que deseja,
A vida erra constantemente o caminho para a vida.”

“Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberdade de espírito...”

“E isso tudo, que é tanto, é pouco para o que eu quero.”

“Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...”

“Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido”

“Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...”

“Perante esta única realidade terrível – a de haver uma realidade.”

“Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”

“Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro –
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.”

“Deixem-me ao menos ter sono;
Quem sabe que mais terei?”

“Ora, até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.”

“Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não me sucederam
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.”

“Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!”

“Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim...”

“Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.”

“Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ter que ser assim.”

“Sossega, coração inútil, sossega!
Sossega, porque nada há que esperar,
E por isso nada que desesperar também...”

“Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.”

“O horror sórdido do que, a sós consigo,
Vergonhosa de si, no escuro, cada alma humana pensa.”

“Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.”

“Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.”

“Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado não sei.
De nada me serviria sabê-lo
Pois o cansaço ficaria na mesma,
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto –
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma tranquilidade lúcida
Do entendimento retrospectivo...”